A visita ao Rio de
Janeiro entre os dias 30 de novembro a 3 de janeiro de 2013 trouxe um
aglomerado de experiências e reflexões que giraram em torno dos
moradores, do uso dos espaços públicos e das políticas também
públicas que antecedem aos grandes eventos e impõe deslocamentos
entre os territórios que compõe esse cidade.
Essa experiência de
reflexão, além de exercitada de maneira coletiva quando visitávamos
aos museus programados, teve um caráter especialmente individual.
O tom especial foram as
lembranças de uma experiência passada, da primeira vez que
pernoitei no Rio de Janeiro, em viagem de visita técnica da
disciplina de Preservação e Conservação de Bens Culturais II, com
a professora Gabriela de Lima Gomes. A mesma viagem também
caracteriza a primeira vez que participei como hóspede, em um
projeto de hospedagem solidária chamado Couchsurfing. O
Couchsurfing, apenas a título de curiosidade, é um projeto
em que você se dispõe a hospedar estranhos em sua casa,
gratuitamente, por pura fé na comunidade que se criou em torno do
conceito, carregado de esperança no mundo, de solidariedade e troca
de experiências. Os membros inscritos podem também fazer
solicitações para se hospedar nos locais de sua preferência, onde
existam pessoas da comunidade disponíveis e dispostas a receber
Surfers.
Fiquei hospedada em uma
das centenas de favelas do Rio de Janeiro, chamada Rio das Pedras, na
região de Jacarepaguá, dentro da extensa Zona Oeste da capital.
Quando olhei para um mapa turístico em busca do local onde
estávamos, notei que embora o mapa se preocupasse em mostrar com
detalhes a turística e fotogênica Zona Sul, e até mesmo a tão
próxima Barra da Tijuca, localizada a 20 minutos dali, nem a Rio das
Pedras e nem as comunidades e bairros localizados ao longo de
quilômetros a frente no sentido oeste, constavam no mapa.
Do mesmo modo me marcou
o fato de chegar na comunidade após 1h30 de viagem, vindo da regiãoo
central, e ver que a televisão sintonizada na Rede Globo, no horário
da novela de grande audiência às 21h, exibindo visões panorâmicas
das estonteantes praias do Rio de Janeiro e seus bairros nobres, e
nem sequer perceber menções aos outros Rios de Janeiros,
principalmente os Rios ao oeste.
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Vista da Favela do Rio das Pedras (Imagem extraída do UOL notícias - http://noticias.uol.com.br/album/album-do-dia/2012/07/18/imagens-do-dia---18-de-julho-de-2012.htm?mobile) |
Ainda nesse momento eu
pouco entendia sobre o crescente movimento de patrimonialização de
favelas, que consiste, dentre outros atos, no resgate à imagem, em
uma afirmação identitária, e na veiculação positiva do modo de
vida e da sociabilidade em comunidades historicamente esquecidas pelo
poder público no que diz respeito à concessão de direitos
fundamentais, mas lembradas quando existem disputas em torno dos
territórios que ocupam.
Esse
movimento só acontece porque a história das favelas é marcada pela
resistência, que não pode de maneira alguma ser individual. Na Rio
das Pedras, pude observar um coletivo, embora muito complexo pois
trata-se de um coletivo formado por indivíduos e seus interesses,
que possuem necessidades, sonhos e desejos que passam por vezes acima
dos interesses gerais. Me perguntei quantos Rios de Janeiro cabem
numa única cidade.
Embora eu tenha
crescido em uma região de periferia em São Paulo, nunca havia
percebido o que percebi das relações nas favelas cariocas, tanto no
pouco que pude vivenciar da Rio das Pedras, quanto da organização
dos moradores em suas lideranças comunitárias no complexo da Maré.
A visita abriu minhas percepções para os ideias de preservação
das comunidades cariocas. Fui além das imagens que se cristalizaram
no meu imaginário, muito inspiradas pelo videoclipe do rapper
americano Snoop Dog, gravado no Morro de Santa Marta. Para além de
um ambiente exótico, de casas surpreendentemente equilibradas no
alto dos morros, de um lugar onde o samba e o carnaval estão sempre
presentes e belas mulheres negras estão sempre de biquíni, as
favelas são lugares de resistência.
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Vista do bairro Vila Primavera, no qual cresci em São Paulo (SP). |
Lugares onde as pessoas
lutam para garantir seus direitos mais básicos e deles não serem
privadas nos mostram as potencialidades dos museus para a resistência
e afirmação de identidades (e reformulação de imagens, como é o
caso da Maré). Esses espaços mostram que os museus não são apenas
locais de contemplação ou de guarda de algo que corre o risco de se
perder. Ao contrário: tornam cada vez mais evidente a vocação de
centros culturais, onde diversas manifestações artísticas,
políticas e reivindicatórias, tomam corpo.
Quando o museu trabalha
por exemplo a memória do trauma da violência que circunda as
comunidades da Maré através da realização de oficinas com
adolescentes – talvez os agentes que mais se envolvem nesse
processo de violência -, que criam moldes das marcas de balas
perdidas nas paredes das casas e dos estabelecimentos comerciais, ele
tenta canalizar o peso da violência em resistência, sem esconder as
marcas ou se silenciar sobre o fato.
O fato do museu ser
gerido pelas lideranças comunitárias, o aproxima dos movimentos
sociais, tais como as outras atividades que são desenvolvidas em
paralelo pelos agentes da comunidade. Esses processos são
fundamentais no processo de criação de vínculos, de auto
reconhecimento em meio ao coletivo, de valorização das relações e
ações em conjunto.
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Vista aérea do Complexo da Maré retirada do jornal O Dia (http://odia.ig.com.br/portal/rio/for%C3%A7a-tarefa-vai-proteger-elei%C3%A7%C3%B5es-na-mar%C3%A9-e-zona-oeste-1.466940) |
Comunidades como a
Maré, deveriam ser lugares prioritários para a instalação de
equipamentos culturais e de valorização da memória e da cultura
local.
Meu comentário, porém,
não é ingênuo a ponto de negar as diversas forças que se
entremeiam e sobrepõe-se num contínuo processo de negociação, tal
como a lógica foucaultiana nos faz perceber. Rio das Pedras, por
exemplo, em seu verbete na wikipédia é reconhecido como o berço
das milícias (link:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Rio_das_Pedras_(bairro_do_Rio_de_Janeiro).
Já as favelas da Maré, por constituírem um vasto complexo, possuem
diversos poderes envolvidos, desde uma base do Batalhão de Operações
Policiais Especiais nas proximidades do museu, uma grande base da
polícia militar do Rio de Janeiro, as pressões da prefeitura para
desocupar algumas áreas, e o movimento do tráfico no alto dos
morros e as atividades de corrupção que envolvem a todos.
É exatamente por essa
gama de poderes que instituições de memória como essas são de
extrema importância como catalizadores das tensões. Os 12 tempos da
Maré, tratados em sua exposição de longa duração, além de
exporem aos visitantes de fora da comunidade a identidade local e de
seus moradores, também tratam de assuntos delicados que incitam à
reflexão e valorizam a trajetória conturbada de lutas e esforços
pra permanecer no local.
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Imagem dos cartuchos de balas perdidas encontradas no Complexo da Maré, exibidas na configuração anterior da exposição de longa duração do museu. (http://culturadigital.br/braxil/files/2010/12/aP1140194.jpg)
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