a tradição das visitas técnicas

No inverno de julho de 1945, quando as moças e senhoras costumavam usar chapéus em roupas de passeio e os homens trajavam ternos à rua, a turma do Curso de Museus do Museu Histórico Nacional/RJ excursionava para a cidade de Ouro Preto em Minas Gerais. O grupo de 19 pessoas veio de trem numa viagem que durou 16 horas. Durante a permanência de uma semana visitaram também as cidades de Mariana, Congonhas do Campo e o então arraial de Ouro Branco.

Passados 68 anos, o Curso de Museologia da UFOP mantém a tradição das visitas técnicas iniciada pelo Curso de Museus. Todo semestre o DEMUL se reúne para discutir e aprovar os roteiros de viagens das disciplinas que possuem visitas previstas em suas ementas. Em geral, os estudantes organizam a hospedagem, na busca de conforto, higiene, bom preço e localização. Os professores, claro, responsabilizam-se pela elaboração dos roteiros detalhados, agendamentos, relatórios posteriores, avaliações e ainda por todo o aspecto operacional de deslocamento.

Em meio à transitoriedade do mundo contemporâneo as visitas técnicas permanecem uma boa tradição que nos orgulhamos em manter devido à sua importância como recurso pedagógico.

Este blog cumpre, pois o objetivo final de avaliar os estudantes em suas visitas aos museus. Suas postagens são registros, narrativas e leituras da experiência vivida, um diário coletivo, dinâmico, crítico, quiçá, divertido.

Tenham todos uma boa leitura e uma boa viagem!

Prof.ª Ana Audebert


segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Bicho de sete cabeças

Andando pelos espaços do Museu da Loucura em Barbacena, antigo Hospital Colônia, sentimos o peso que aqueles cubículos carregam: os sussurros, o ranger, o olhar angustiado, a ausência no crânio desdentado, a presença no uniforme azulão. Em cada segundo lá a música que aqui precede ecoava na minha mente. Vidas ceifadas, memórias lobotomizadas, mortes são números... "Não tem ninguém que merece, não tem coração que esquece, bicho de sete cabeças." 

"Não dá pé não tem pé nem cabeça
Não tem ninguém que mereça
Não tem coração que esqueça
Não tem jeito mesmo
Não tem dó no peito
Não tem nem talvez ter feito
O que você me fez desapareça
Cresça e desapareça
Não tem dó no peito
Não tem jeito
Não tem coração que esqueça
Não tem ninguém que mereça
Não tem pé não tem cabeça
Não dá pé não é direito
Não foi nada eu não fiz nada disso
E você fez um bicho de sete cabeças
Bicho de sete cabeças
Bicho de sete cabeças
Bicho de sete cabeças
Bicho de sete cabeças
Não dá pé não tem pé nem cabeça
Não tem ninguém que mereça
Não tem coração que esqueça
Não tem jeito mesmo
Não tem dó no peito
Não tem nem talvez ter feito
O que você me fez desapareça
Bicho de sete cabeças
Bicho de sete cabeças
Bicho de sete cabeças" 
Música: Bicho de Sete Cabeças II 
Compositores: Zé Ramalho/Geraldo Azevedo/Renato Rocha





sexta-feira, 29 de novembro de 2019

As Mulheres no Museu da Loucura


Autoras: Laura Elisa, Lunara Silva e Milla Santo

Foto feita por Milla Santo - Nov/2019


O Museu da Loucura em Barbacena, hoje relata um pouco do que foi o Hospital Colônia, espaço esse que entrou em funcionamento em 1903 e encerrou as atividades somente nos anos de 1980. Durante esse período esse ambiente “hospitalar” representava um espaço onde as pessoas que fugiam dos “padrões” instaurados na época, eram internadas contra à vontade. Somente 30% das internações apresentavam algum transtorno psiquiátrico, portanto os outros 70% eram em sua maioria negros, mulheres, homossexuais, alcoólatras, mendigos. Nas primeiras imagens que se busca pelas mídias sociais e no próprio museu se destaca a presença de negros em sua maioria, e mulheres. O papel da mulher nesses períodos era bem claro, submissão a figura patriarcal, nesse sentido Arbex 1(2013, p. 30).
Muitas ignoradas eram filhas de fazendeiros as quais haviam perdido a virgindade ou adotavam comportamento considerado inadequado para um Brasil, à época, dominado por coronéis e latifundiários. Esposas trocadas por amantes acabavam silenciadas pela internação no Colônia. Havia também prostitutas, a maioria vinda de São João del-Rei, enviadas para o pavilhão feminino Arthur Bernardes após cortarem com gilete os homens com quem haviam se deitado, mas que se recusavam a pagar pelo programa.
A citação acima é um exemplo da discriminação sofridas só pelo fato de ser mulher, não havia poder de escolha, nem sobre o próprio corpo e as razões para as internações de conotação completamente fútil, para resguardo dos homens. Ação que, acometeria para estas mulheres excluídas da sociedade, danos irreparáveis a sua sanidade, sendo levadas a humilhação, estupro, tratamentos de eletrochoques, ações desumanizantes.
Durante a visita ao museu, principalmente observando as diversas maneiras que as  mulheres estão sendo retratadas, pode-se perceber como é recorrente a figura da mulher nua ou seminua, deixando-as expostas, a diversos tipos de violências, como por exemplo os abusos sexuais, assunto falado durante a visita por um dos funcionários da instituição. Segundo ele, os abusos ocorriam inclusive por funcionários, assim como por outros internos, fato que era possibilitado por superlotação.
É importante observarmos a forma como as mulheres estão sendo representadas dentro do museu, seus corpos e sua dor estão expostos no Museu da Loucura, através de imagens, de versos e objetos:






 1-ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro – 1. ed. – São Paulo: Geração Editorial, 2013.

Museu da Loucura: apaguem as diferenças, escondam os indesejáveis


A visita ao Museu da Loucura em Barbacena MG provoca algumas reflexões e impressões, inclusive sobre o corpo. Em alguns momentos, sentimos no peito uma parte da dor das pessoas ali estiveram.

A experiência imersiva na Sala de Lobotomia é um exemplo da força da expressão dessa dor: trata-se de um cubículo, com som ambiente de um coração pulsando. A lobotomia "apagará" esse coração, entendido como metáfora da subjetividade criativa e pulsante. "Tem gente que não bate bem do coração" usuário de saúde mental do CAPS ( Centro de Atenção Psicossocial) de Mariana MG.
Entrada da Sala de Lobotomia
Interior da Sala de Lobotomia
 e instrumental cirúrgico.


A internação no Hospital Colônia de Barbacena, não somente a submissão ao tratamento de lobotomia, apagou vidas, desejos, anseios; abortou  possíveis artistas, escritores,cientistas; relegou ao não-ser todo tipo de 'indesejável". A mulher autônoma, o sonhador, o 'vagabundo'. Vidas interrompidas, que logo murchariam em desalento e morte. 

Por outro lado, alguns tiveram um pouco de espaço de expressão, apesar da maioria ter ócio improdutivo e vegetativo.

Músicas, poemas, brinquedos foram criados. A força pulsante do desejo daquelas pessoas foi expressa e uma pequena amostra está lá, para nós nós lembrar da potência da vida. 

Brinquedos feitos por internos.

Poesias.



quinta-feira, 28 de novembro de 2019


Ficha técnica:

Texto e Voz- Áurea Leão
Imagens- Áurea Leão
Edição- Paula Isabella

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Holocausto Brasileiro - A história por traz da "loucura"

"Texto com base a partir da experiência e material analisado sobre o Museu da Loucura- Barbacena MG" (DEMUL/UFOP)


Fonte:Daniela Arbex
1) Os loucos somos nós, Daniela Arbex devolve nome, historia e identidade àqueles que até então eram registrados como "ignorados de tal". Eram um não ser. Pela narrativa eles retornaram, como Maria de Jesus, internada porque se sentia triste; Antonio da Silva, porque era epilético ou ainda Antonio Gomes da Silva sem diagnóstico, que vinte e um, dos seus trinta e quatro anos de internação mudo, porque ninguém se lembrou de perguntar  se ele falava.São Sobreviventes de um holocausto que atravessou a maior parte do século XX, vivido na colônia, como era chamado o maior hospício do Brasil, na cidade de Barbacena, em Minas Gerais. Como pessoas, não mais como corpos sem palavras, aqueles que foram chamados de "doidos", denunciam a loucura dos "normais". As palavras sofrem com a banalização . Quando abusados pelo nosso despudor, são roubados em seus sentidos. Holocausto é uma palavra assim: Em geral, soa como exagero quando aplicado a algo além de assassinato em massa de judeus pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Neste livro porém , seu uso é preciso. Terrivelmente preciso. Pelo menos 60 mil pessoas morreram entre os muros da Colônia. Tinham sido em sua maioria enfiadas nos vagões de um trem e internadas à força. Quando elas chegavam à Colônia, suas cabeças eram raspadas e as roupas arrancadas. Perderam seus nomes e foram rebatizadas pelos funcionários. Começaram e terminaram ali, cerca de 70%, não tinham um diagnóstico de doença mental. Eram epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, pessoas que se rebelavam, gente que se tornava incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas, violentadas por seus patrões, eram esposas que eram confinadas para que os maridos pudesse morar com as amantes, eram filhas de fazendeiros que perdiam a virgindade antes do casamento. A parada na Estação Bias Fores era a última da longa viagem de trem que cortava o interior do país. Os deserdados sociais chegavam a Barbacena de vários cantos do Brasil, semelhando durante a Segunda Guerra Mundial,quando os judeus chegavam  para os campos de concentração nazista de Auschwitz. A expressão "trem de doido" surgiu pelo escritor Guimarães Rosa e foi incorporada ao vocabulário dos mineiros para definir algo positivo, mas infelizmente marcava o inicio de uma viagem sem volta ao inferno, Os recém chegados à estação da colônia, após a sessão de desinfecção. o grupo recebia o famoso "azulão", como eram conhecidos os uniformes dos internos. Fome e sede eram permanentes no local onde o esgoto que cortava os pavilhões, serviam muitas vezes como fonte de água. Nem todos tinha estômago para se alimentarem de bichos, mas os anos na Colônia, consumiam os últimos vestígios de humanidade nos pacientes. Além da alimentação racionada no intervalo entre almoço e jantar, servidos ao meio dia e às 05 horas da tarde, os pacientes não comiam mais nada. Construído junto com o Hospital Colônia no inicio do século XX, o Cemitério da Paz, cuja área pertence à Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais, está desativado desde o final da década de 80. O psiquiatra, Jairo Toledo, que  respondeu pela direção do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena até março de 2013, explicou que após os cerca de 60 mil mortos enterrados ali,o terreno está saturado. 
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Fonte:Daniela Arbex
                                                          Fonte :Google imagens 
Documento do livro de registros da colônia confirmam a venda de peças anatômicas para a Universidade Federal de Minas Gerais, que adquiriu em uma década 543 corpos, para aulas de anatomia. Já a Universidade Federal de Juiz de Fora, foi responsável pela compra de 67 cadáveres entre fevereiro de 1970 e maio de 1972. Documentos dos Hospital mostram que na remessa feita em março de 1970, os corpos transformados como indigentes foram negociados por 50 cruzeiros cada um. O fornecimento de peças dobrava nos meses de inverno, época que falecia mais na Colônia . Se a procura era baixa, os mortos eram dissolvidos em ácido.
Nise da Silveira, foi a mulher que revolucionou o tratamento psiquiátrico do Brasil,. Ela enxergou a riqueza dos seres humanos e lhes deu a dignidade. Em terras de sanidade desenfreadas que permite a loucura contabilizar relatos selvagens.  A falta de utopia com um racionalismo paralisante de sonhar ou arrepender. Essa mulher se rebelou contra a psiquiatria de violentos choques,camisas de força e isolamento,  para propor um tratamento humanizado e reabilitação dos pacientes. Nise nos fala de uma atualidade em que a loucura é estigmatizada e polarizada, e cobramos de nós mesmos o tempo todo, como se não pudéssemos falhar. Essa mulher agigantou a humanidade ao cuidar de brasileiros rejeitados de uma história. O que retrata a loucura, é encontrar um pouco de nós mesmos e a própria existência. Nise da Silveira soube transformar o conhecimento do que é a loucura. Em 1944, Nise passou a trabalhar no Hospital Pedro II antigo Centro Psiquiátrico Nacional, no Rio de Janeiro. Como se recusou a fazer o tratamento da época, recebeu como punição, a transferência para o Setor de Terapia Ocupacional do Pedro II. Nise apontou falhas na Psiquiatria em seu contexto e suas soluções dando sentido ao tratamento e as relações entre o psiquiatra e paciente É nesse momento que Nise revoluciona o tratamento das doenças mentais.Em vez de permitir que seus pacientes fizessem serviços de limpeza ou levassem surras, práticas bastante corriqueiras até então, oferece a eles pincéis, tintas e telas em branco. Nos seus 94 anos de vida, publicou dez livros e vários artigos científicos.
                                        Fonte :Google imagens

Durante o decorrer da historia pouco se dá importância à questão do "Insano". Durante a idade média, tal problema era visto simplesmente como um erro, uma falha da razão. Os loucos vagavam livre pela sociedade. No renascimento, a loucura era vista como formas da razão. Na idade clássica entre os períodos entre o século XVI e XVII, identificou como algo que nos leva ao erro, e  o maior enfoque de exclusão seria dado, segundo Foucault, ao leproso.  Na idade clássica e  o advento da idade moderna, com o surgimento da psiquiatria e as mistificações da ciência, a loucura ganhava, por meio de discursos, a legitimidade  como doença. Assim, considerando certos domínios científicos , a loucura passaria a ser criminosa, perigosa, talvez "contagiosa", algo que nos leva ao erro. Uma doença à sociedade Desta forma ,no fim da idade clássica,  por meio do pensamento de Michel Foucault, o discurso sobre a loucura,  como formas de poder, isolamento ou punição, no intuito de mostrar tanto o saber médico, quanto a internação psiquiátrica, tornaram-se poderes institucionais da época. E como toda doença deve-se fazer existir uma cura. No século XVIII, o fenômeno de exclusão para os loucos se torna evidente com as internações e os hospícios se transformaram em fins terapêuticos e penitenciários.Desta forma, cabe nos perguntarmos como surgiu a necessidade de aprisionamento de um louco? É sob a influência do modo de internamento tal como ele se constituiu no século XVIII, que a doença se isolou uma certa medida de seu contexto médico e num espaço moral de exclusão se integrou ao ponto de vista institucional, num fenômeno bastante complexo do qual a medicina demorará a se apropriar do que é a "loucura".

Fonte :Google imagens


6) Portanto,o Museu da Loucura, remete à uma historia triste de torturas físicas e psicológicas , abandonos e crueldade à pessoas vindas de toda a Minas Gerais,  feitos pelo corpo clínico e administrativo do Hospital Colônia. Nessa trajetória, desde a sua fundação, foram realizados diversos experimentos de tratamentos como eletro choques que muitas vezes levava à morte de pacientes, que nunca tiveram diagnósticos precisos na causa do óbito.  Morriam-se também pela angústia, maus tratos, fome e frio, e pelo esquecimento com o decorrer do tempo, por parte de familiares. Perdia-se a identidade, assim que o trem chegava à estação Bias Fortes. Esse cenário rendeu comparações com os campos de concentrações nazistas Os pacientes eram então separados, por idade, sexo e características físicas. Com o passar dos anos, o descaso e erros de diagnósticos na área médica do Hospital Colônia, promoveu a superlotação do espaço onde praticamente se tornou um depósito de pessoas internadas por tristeza, gays, alcoólatras, mães solteiras, mendigos, negros, pobres, pessoas sem documentos. Com capacidade para tratar aproximadamente 200 internos, chegou a ter 5 mil internos, em completa desumanização em seus complexos, com alimentação escassa, esgoto a céu aberto onde os internos se banhavam e bebiam água, pois também não tinham acesso à água potável.  Com isso, também era alta a taxa de mortalidade. Com excesso de sepultamento no cemitério anexo ao hospital Colônia, a venda da cadáveres de paciente internos para faculdades de medicinas se tornou uma rotina à partir dos anos 60, atingindo seu auge em 71, conforme registros da contabilidade do Hospital Colônia.    Esse triste episódio no tratamento psiquiátrico de nossa história teve o fim nos anos 80. Em 1996 um do seus pavilhões foi transformado em museu mantendo viva essa lamentável memória.

A crônica de um dia de torpor

Era um lugar que me interessava, essas coisas da mente humana, de como eram tratadas as pessoas que não tinham culpa de um diagnostico e não sabiam o que aconteciam com suas crises, a mente humana as vezes nos prega peças, pânicos, falta de empatia pra viver e pessoalmente , isso é uma incógnita, por isso o meu fascínio, já havia lido sobre ele, assistido documentários, e fui descobrindo coisas mais obscuras, coisas desumanas que aquele lugar viveu, mas meu interesse não minguou, posso dizer que foi acrescentado um outro tópico curioso, porém nunca estive lá, até que me surgiu a oportunidade de ir com meus colegas de sala de aula, sairíamos de Ouro Preto bem cedo.
O dia chegou, foi uma manhã virada, tinha virado a madrugada, junto a insônia que insiste em aparecer, mas eu estava ansiosa, como sempre, defino como meu estado crônico, pois eu queria ver, queria sentir aquele lugar que viveu tanta coisa e agora era museu, oque mais uma estudante de museologia queria!? A ida foi ótima, um amigo querido me deu um Dramin, então a fadiga que me importunava passou, nunca fui uma admiradora de visitas técnicas, é muita correria, muita gente junto, minha alma é mais solitária e para poucos, mas essa valia a pena, quando chegamos comecei a sentir uma energia densa, acredito muito nisso, na energia das coisas, lugares, pessoas e tudo que esse infinito universo proporciona, comecei a sentir um pouco de falta de ar, acabei esquecendo de mencionar que sou bem sensitiva, meu pai de santo e os curadores do Intituto de Pranaterapia afirmavam, tanto que naquela manhã tampei meu umbigo, para não absorver energias que iriam me sugar, mas eu estava curiosa, queria entrar, queria ver, sentir, não queria que fosse uma experiência técnica, ficar observando a iluminação, as vitrines, se era acessível, eu queria ser sensor, sentir o que aquela instituição queria mostrar.
Comecei minha experiência um pouco frustrada, na minha cabeça se passava - poxa, mais eles podiam explorar mais o sensorial, eles tinham tanto material e o recorte museológico dá tantas margens pra isso, algumas coisas impactavam muito, o próprio acervo, aparelhos de lobotomia e suas variações, me faziam pensar como uma pessoa recebia a notícia que sofreria aquele procedimento, no outro canto do mesmo módulo uma plotagem com alguns rostos, tentei entender o que eles estavam expressando, mas eu sabia que nunca entenderia, o módulo do trem de Barbacena estava mais denso, tive uma sensação mais forte mesmo sendo um módulo onde não abrange a obscuridade daquela história, um colega contou sobre sentir isso também na mesma sala, quando estava me preparando para subir no segundo pavimento, me deparei com um ser humano enjaulado, era tão perturbador que comecei a subir mais rápido, pra ver melhor que instalação era aquela, mas eu não conseguia absorver, era triste, a pessoa que ali estava eternizada, estava tão destroçada que não reconhecia se era mulher ou homem, se ela estava chorando ou estava desesperada ou os dois provavelmente, minha decepção estava começando a diminuir, eu queria sensores pra ter a experiência que tive com aquele ser humano enjaulado, mas os módulos seguiram o mesmo padrão, a última sala que entrei tinham 4 totens com áudios dispersos de relatos, gemidos, canções cantadas, mas eu já havia as escutado nos documentários assistidos, pensei que eles sem um fone para cada atrapalhou, pq os sons eram soltos, mas depois compreendi, devia ser esse o barulho de lá, uns gemendo de dor, de tristeza ou tantos outros sentimentos que temos, uns tentando manter a sanidade cantando ou conversando, era esse o som, porém claro que com menos intensidade, fiquei imaginando esses sons 4 vezes mais altos, acho que esse pode ter sido a realidade, nessa hora eu precisava de um ar, precisava sair dali, me sentei junto a alguns colegas que relataram que sentiam que ali já viveu muito sofrimento, de repente, de forma muito carinhosa um cachorrinho se aproximou, com muita doçura começou a tentar me abraçar e eu fui no jogo dele, quis retribuir o amor, imaginei será que ele vive lá? animais são seres iluminados, será que ele vivia ali com uma missão de aliviar a densa energia, mas uma coisa não saia da minha cabeça, porque holocausto estava tão no escuro daquela comunicação museal, estava um pouco velado essa questão,  particularmente isso seria o auge do fechamento pra esse museu, essa história precisa tanto ser divulgada, eu não conhecia, também vindo do sudeste do Mato Grosso, lá as pessoas não costumam questionar, esse é um dos motivos que não gosto da minha região.
Depois de receber e dar muito carinho, fomos chamados para uma breve fala, no auditório, onde um funcionário falava do espaço museal, minha cabeça sempre questionando - será que ele não vai falar do holocausto?!, fomos embora, eu ainda com o torpor de um sono regado ao movimento do ônibus, voltei dormindo, eu precisava repor minhas energias e com uma leve decepção, aquela exposição não representou a dor, as terríveis lembranças que aquelas pessoas tinham, foi tudo velado mas sentido ao mesmo tempo, mas deve haver um motivo, eu só não sei, foi apenas um pensamento de uma museologa em formação, onde o mundo é ideal e a vida não é real.

terça-feira, 26 de novembro de 2019


A DIFERENÇA
A diferença entre um poeta e um louco é que o poeta
sabe que é louco... Porque a poesia é uma loucura lúcida.
                                                           Mario Quintana


A fé consciente é liberdade.
A fé instintiva é escravidão.
A fé mecânica é loucura.
A esperança consciente é força.
A esperança emocional é covardia.
A esperança mecânica é doença.
O amor consciente desperta o amor.
O amor emocional desperta o inesperado.
O amor mecânico desperta o ódio.



COLÔNIA DE BARBACENA?
Episódio foi um dos mais grotescos da história brasileira
Por Lucas Baranyi
access_time4 jul 2018, 20h11 - Publicado em 4 abr 2018, 16h09


https://abrilsuperinteressante.files.wordpress.com/2018/07/barbacena2.jpg?quality=70&strip=info&w=1000&h=722



Spa na montanha
Em 1903, Barbacena, MG, ganhou a alcunha de “Cidade dos Loucos”, graças à inauguração de sete instituições psiquiátricas no município. Na época, estâncias de clima ameno, como Barbacena, eram vistas como propícias para o tratamento de doenças mentais. Uma dessas iniciativas era o Hospital Colônia. Mas, com o tempo, o que era planejado como uma instituição médica tornou-se um matadouro
Campo de concentração
Os pacientes eram separados por sexo, idade e características físicas. Como o Colônia não tratava apenas pessoas da cidade, muitas vinham de fora, desembarcando de trem. Em 1933, o escritor Guimarães Rosa, que trabalhou brevemente como médico no Colônia, chamou aquilo de “trem de doido”. Anos depois, o cenário rendeu comparações inevitáveis com os campos de concentração nazistas, já que eles também eram abastecidos com trens
Tratamentos
Torturas físicas e psicológicas eram rotina no Colônia. Entre as mais comuns havia a ducha escocesa (banho propiciado por máquinas de alta pressão) e tratamentos de choque, ambos aplicados a quem não se comportasse bem. Estupros também foram relatados durante as décadas de funcionamento do hospital
Chocante
Em geral, hospitais psiquiátricos usavam métodos como tratamento de choque nos pacientes – não era uma exclusividade do Colônia. A situação começou a mudar com uma revolução no sistema de saúde mental proposta pelo psiquiatra italiano Franco Basaglia, na década de 1960, e com o Movimento Antimanicomial, criado no Brasil em 1987, que queria que as instituições tivessem um perfil de tratamento e de reabilitação, não de prisão
·         A terapia de choque (eletroconvulsoterapia) surgiu na década de 1930 como alternativa experimental para tratar casos de psicopatologias graves
Superlotação
O hospital poderia receber até 200 pessoas, mas chegou a ter 5 mil. Para comportar tanta gente e abrir espaço, o Colônia trocou camas por capim. A desumanização se espalhava pelos 16 pavilhões, onde faltavam água encanada e alimentos. Muitos internos bebiam e se banhavam no esgoto a céu aberto. Com uma sucessão de maus-tratos, frio e fome, muitos não resistiam
O buraco é sempre mais embaixo
Percebendo que o cemitério municipal já não comportava o número cada vez mais alto de mortos no Colônia, funcionários do hospital começaram a traficar corpos para faculdades de medicina, que os usavam em aulas de anatomia. Se a procura era baixa, os mortos eram dissolvidos em ácido
Números da atrocidade
Condições precárias, torturas, superlotação, abandono e crueldade resultaram em uma catástrofe anunciada. Estima-se que 60 mil vidas foram perdidas no Colônia até o fim dos métodos desumanos nos anos 80. Em 1996, um dos pavilhões foi transformado em museu para manter viva essa lamentável memória da história brasileira. Hoje, restam menos de 200 sobreviventes da tragédia.

CONSULTORIA Daniela Arbex, jornalista e autora do livro O Holocausto Brasileiro, e Guilherme Conti Marcello, professor de psicologia da Universidade Anhanguera (São Paulo)
FONTE Documentário Holocausto Brasileiro (HBO e Vagalume Filmes)

Soneto: Sobre o Hospital Colônia de Barbacena

Nas famílias os laços se acabam
Normalizado é o caos que se instala
Rejeitar é um poder dos que lhes falam
E o sofrer é daquele que se cala

O poder vendendo um ser pra por migalha
O descaso dói na alma
E o desprezo é crescente e nunca falha

Há cansaço nas pernas e nos braços
Não teve amor para quem ali suplicou
O semblante é marcado por traços
Que contam histórias para quem ficou

Azulão vestindo dor
Conceituado foi o Doutor
Misericórdia, meu Senhor!

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Inconsciente do Horror



Visita técnica ao Museu da Loucura em Barbacena
O Museu da Loucura foi inaugurado em 16 de agosto de 1996, através de uma parceria entre a Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig) e a Fundação Municipal de Cultura de Barbacena (Fundac). É uma importante construção arquitetônica considerada símbolo do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB. Tem como objetivo principal resgatar a história do primeiro hospital psiquiátrico de Minas Gerais, o lendário Hospital Colônia de Barbacena. O Museu da Loucura serve de elo entre a instituição e a sociedade, e tem a expectativa de proporcionar a quebra do estigma contra o portador de sofrimento mental, despertando reflexões sobre as fronteiras entre a loucura e a razão.
Rico de informação, porem pequeno em seu acervo o Museu da loucura , situa-se no interior do torreão dos pátios internos do Hospital Psiquiátrico de Barbacena – MG. Logo o que impressiona é a arquitetura alemã, uma escadaria em caracol de acesso à parte superior, a construção remete os primórdios do século XIX.
No cimo do torreão a fotografia de uma interna sob grades, nua, expressa desolação, desespero e indignação, que os olhos, curiosos, buscam no desfiladeiro das escadas se depara com a cena. Causa um certo embaralhamento, vertigem e confusão, ver tal imagem numa ascensão espiralada.
A denúncia dos horrores ali cometidos veio ao conhecimento dos brasileiro e do mundo graças ao jornalista e fotógrafo Luis Alfredo, da Revista o Cruzeiro, que a pedido de Magalhães Pinto,  gravou áudio-visual, capturou imagens em preto e branco, titulou sua matéria de Sucursal do Inferno.
O acervo do museu é composto por textos, fotografias, vídeos, documentos, equipamentos, objetos e instrumentação cirúrgica que relatam a história do tratamento ao portador de sofrimento mental. O relato oral das pessoas que presenciaram os últimos tempos de horror são de muita emoção e indignação. Corpos dos indigentes eram comercializados e a super lotação era devido ao alto valor sobre cada indivíduo internado. 
A Sala de audiovisual induz o visitante a ouvir, em particular, as vozes de cada paciente a relatar suas angustias, desejos, como que um atendimento em confissão individual, pois ao adentrar à sala os sons se misturam. O sentimento que se tem é de muita dor e vontade de fugir.
Lembro o teórico Paul Ricoeur que diz que é preciso lembrar para esquecer. Em algum lugar da psique está a lembrança, mas para lembrar devemos esquecer. A memória do trauma deve ser lembrada pois é muito fácil de ser esquecida, pelo fato de, realmente e culturalmente, tentar ser apagada por remeter lembranças, triste, dolorosa, vergonhosa e repugnante. O museu da Loucura é para fazer lembrar o porquê esquecer e lembrar.  Esquecer faz parte da lembrança e se desenvolvem numa dialética complexa e dinâmica. 
O que se passou no Museu da Loucura jamais será esquecido, pois traz em sua museografia memórias de preconceitos, de uma sociedade patriarcal, que ainda vive resquícios do cientificismo, do positivismo, somados aos governos ditatoriais e autoritários.

domingo, 24 de novembro de 2019

Diário de Viagem


Primeiro momento:
Naquele momento em que ali chegava, foi possível sentir por breves instantes uma sensação de ansiedade, o ar rarefeito e o clima cinza daquele lugar, de certo modo assombrado. Não restavam dúvidas, havíamos chegado ao local de uma das maiores barbáries que acontecera em nosso país, comparado com os próprios campos de concentração nazista da Europa. A primeira coisa que vi ao descer do ônibus foi a placa de indicação setorial do espaço:



Ao olhar para o lado esquerdo em que indicava a placa, pude ver a poucos metros de distância uma imagem de cenário que parecia saída de um filme de terror psicológico, ou simplesmente, de um lugar atormentado. Era tão real e claro quanto a própria luz do dia! Assim, fomos andando em sua direção. Estava um pouco aflito e pesado, mas com um sentimento de certa esperança que ressoava na minha cabeça em forma de palavras como: “é o passado”, “já foi resolvido”, “o horror já acabou”, “é um museu criado para contar uma história específica de um acontecimento que não existe mais”. Pensamentos um pouco egoístas, mas que naquele breve momento acalentaram o sentimento de angustia sentido ao vislumbrar essa paisagem:




Segundo momento:
Fui aproximando do prédio, vislumbrando aquela arquitetura temática e, diga-se a verdade, de ótimo gosto fosse em qualquer outro espaço que não carregasse aquela aura sinistra. Lembro de ficar imóvel, observando todo o espaço, imaginando o que acontecera ali, saber que estava tão perto de um tempo histórico perturbador me deu certa aflição. E, por um breve momento, eu podia afirmar que conseguia me ver lançando pra além do tempo e do espaço, adentrando como um espectro aqueles muros e locais na época do Hospital Colônia. Os internos (se é que poderíamos chama-los assim), cravados de sua autonomia, de sua subjetividade, daquilo que é mais puro do ser humano, sua alma! Ali não havia tempo para o ser humano, apenas animais atormentados por uma dor imposta, uma dor latente que espalhava como vírus de um por um...todos esses sentimentos, toda essa “visão”, era como se de fato eu pudesse ter dimensão do que foi aquele local, ou pelo menos a ilusão. Senti um calafrio no corpo e uma dor chata no estômago, não há palavras que possam descrever de fato o que sentira ali por aqueles breves segundos.
            Voltado ao meu estado racional, fui caminhando em direção a porta de entrada do museu e me deparei com a sensação mais pesada ainda, era como se cada hora que aproximasse, naquele tempo nublado de chuva, reações pulsativas naturais ressoassem por todo o meu corpo. Resolvi olhar a vista lateral do museu, com a torre e enormes janelas, de fato parecia algo saído de um filme de terror:


Terceiro momento:
            Após todo o momento externo no espaço, adentrei-me à instituição museal. A recepção atenciosa dos funcionários e a empolgação em suas falas. Fiquei imaginando, enquanto um homem de certa idade falava, como seria trabalhar ali. Como eles poderiam fazer um trabalho tão pesado do ponto de vista emocional se transformar em algo receptivo e acolhedor? Era como se eu apenas pudesse observar máscaras, como se tudo aquilo não passasse, talvez, de uma poluição da aura daquele espaço, sentia me adentrar em um local de espetaculização de uma dor tremenda e de uma memória que por mais que seja contada, ainda não encontrou seu espaço de abrangência. Eu estava enganado, obviamente! Profissionais são profissionais, seja em qual ramo for e o quão grotesco seja, eles continuam sendo profissionais. Mas de fato, me bateu um sentimento de repúdio pela reação daquelas pessoas.
            Passado esse momento, iniciei a visita ao espaço e, logo na primeira sala, a primeira coisa que pude ver pelo trabalho de museografia do espaço eram dois “uniformes” e uma grande boneca. Juro que naquele momento me lembrei do filme “O Menino do Pijama Listrado”, do diretor Mark Herman. Não era um “pijama listrado”, mas era um “pijama azul”, aquilo que separava os tidos como "loucos" das pessoas “normais”. Aquilo que excluía toda subjetividade e característica pessoal daqueles indivíduos, tudo que eles tinham de mais importante; seu coração, naquelas roupas, não representavam nada! Apenas animais aprisionados.
A boneca, que também estava ali presente, me remeteu à bola que uniu o personagem judeu Shmuel do personagem alemão Bruno no filme. Aquilo com certeza se remetia a uma criança e, talvez, seja o maior choque daquele espaço. Você imaginar que não foram apenas pessoas com certa idade aprisionadas ali, haviam crianças! Crianças que jamais saberiam o que é brincar na rua, crianças que jamais ganhariam presentes de Natal, crianças que não estudariam ou sentiriam o amor de seus pais, crianças que não cresceriam e se tornariam jovens, que por sua vez não saberiam qual a sensação de um primeiro beijo, um sentimento de amor qualquer, um momento de explosão pura de felicidade....crianças desprovidas do que seria mais puro e belo da vida, a liberdade! Ao adentrar no primeiro módulo, esses pensamentos se tornaram latentes em minha cabeça e, horrivelmente aterrorizantes.
Ali também, se encontrava alguns aparelhos um tanto quanto bizarros. Os Eletroconvulsores, juntamente com a legenda que descrevia o seguinte:

“Eletroconvulsoterapia:
Desenvolvido na década de 1930, por psiquiatras italianos, o método de provocar convulsões através de descargas elétricas, e eletrochoque, passou a ser usado largamente em especial nos casos depressivos. Somente nos anos de 1960, o ECT começou a ser usado após anestesia do paciente. Os riscos: luxações, fraturas e eventualmente, morte por parada cardíaca e respiratória. As descargas variam entre 120 e 130 volts.”




            Dentro daquela descrição eu me perdia entre a sensação de tentar entender como aquilo era feito e o PORQUÊ aquilo sequer era uma opção para “cura” de algo que era tudo, menos doença. Segundo Daniela Arbrex, no livro intitulado de “Holocausto Brasileiro”, cerca de 70% de todos internos não sofriam de qualquer doença mental! 70% dos prisioneiros que ali estavam eram pessoas que viviam suas vidas normalmente e que, por alguma razão horripilante do destino, foram denunciadas e para ali enviadas. Outro ponto naquela sala que me tocou intensamente foi a instalação com as panelas utilizadas no Hospital Colônia, penduradas em fileiras descendo do teto, com plotagens gigantescas de prisioneiros daquele espaço. Planejado pela equipe de curadoria do espaço ou não, se olhado de um certo ângulo, era possível observar a boca aberta de um homem e uma grande panela em sua frente. Imagem simbólica, que a princípio só teve um impacto chocante ao observar. Abaixo da instalação, tínhamos outra legenda que descrevia uma entrevista de um repórter com o diretor do espaço:


“REPÓRTER: - E a alimentação?
DIRETOR: - À basedo padrão do povo brasileiro mesmo. Aqui não temos nenhuma nutricionista. Os doentes não cabem todos, de uma só vez nos refeitórios. Entram uns 100 primeiro, depois outros 100, até todos comerem. O serviço de cozinha é feito por oito funcionárias. Oito funcionárias para preparar comida para 1.360 doentes!”

Quarto momento:   
            Após perpassado o primeiro momento incluso dentro daquele discurso horripilante, me deparo com uma parte ainda pior. Essa parte era destinada a todos aqueles que, mesmo em morte, não encontravam o acalento para seu sofrimento. Os corpos dos prisioneiros dali eram vendidos para as grandes faculdades de medicina do país. Além de todo sofrimento físico e psicológico sofrido em vida, aquelas almas não encontravam o descanso de seus corpos, que seriam intensamente perfurados, analisados, cortados....o sossego que alguns teriam em morte e a sensação de paz, até isso, era usurpado dessas pessoas.
No discurso interno da instituição, é dito que o auge de tal prática se dá em 1971 e em registros analisados no Hospital Colônia, foram indicadas a venda de 1.853 corpos ao longo de 106 meses. Em quase 9 anos a prática se perdurou naquele espaço. Já não bastasse o roubo de suas liberdades, ainda havia o roubo de seus corpos! Nesse momento, é quase se na minha visão, a morte deixasse de ser o consolo de pessoas atormentadas naquele lugar.
          Ao finalizar o primeiro andar da exposição, me dirigi à escada que levava ao segundo andar do museu. Um escada circular de madeira, com uma enorme plotagem no teto, dando uma visão horripilante de uma mulher nua e encarcerada gritando, pelo que tudo indica, por socorro.


A princípio julguei como uma certa espetaculização daquela pobre alma, ali presa por toda sua eternidade e, convenhamos, não deixara de ser. Porém, ao subir aqueles degraus barulhentos e adentrar ao segundo andar, pude me deparar com a seguinte explicação:

“CONTENÇÃO: Celas, frades, correntes, camisas de força, manchons, correias, faixas, cordas (contenção). Banhos gelados e quentes (balneoterapia), injeções dolorosas de essência de terebintina (abcessos de fixação). Tudo para silenciar um sofrimento que precisava apenas gritar.....”

            Não é que se justificasse tal escolha para aquele espaço, porém, era possível entender a intenção de colocar a plotagem daquela prisioneira ali. Era como se eu pudesse, ao subir aqueles degraus e ler aquela descrição, sentir como se estivesse de forma bem rasa entrando naquelas celas, mesmo que de forma remota, era possível imaginar aquele sofrimento e horror vivenciado por aquelas pessoas.

Quinto momento:
“Lobotomia: corte das ligações dos lobos frontais, ou córtex pré-frontal com o resto do cérebro para acalmar as emoções e estabilizar personalidades, sem alterar a inteligência e funções motoras. O córtex pré-frontal cumpre as funções executivas (tomada de decisões, planejamento, raciocínio, compreensão, expressão de personalidade, criatividade e comportamento).”
“O picador de gelo: Chegar ao córtex pré-frontal pela cavidade ocular. Freeman criou o principal instrumento da técnica: o orbiclast, inspirado em um picador de gelo. O outro acessório era um martelo cirúrgico. A cirurgia, feita com anestesia local e em enfermaria comum, foi usada largamente nos EUA até a década de 1960, com resultados controversos.”
            Cheguei à parte mais horripilante da visita, a Sala da Lobotomia. Naquele espaço estavam presentes tudo de mais aterrorizante em práticas cirúrgicas que eram efetuadas. Equipamentos de uma técnica que faz de tudo, menos acalentar a alma de um prisioneiro. O ato consiste, como descrito acima, em pegar um tipo de picador de gelo, enfiar pela cavidade ocular da pessoa, dar uma leve martelada para romper a fina camada de osso que separa o cérebro da cavidade, girando para romper as fibras. Em seguida, era retirado o equipamento e feito do outro lado o mesmo procedimento. O ato durava aproximadamente 15 minutos e seus resultados eram irreversíveis!
O maior horror, para mim, não estava na técnica cirúrgica em si, coisas bem mais intensas são feitas em pacientes que necessitam de alguma cirurgia nos dias de hoje, além do grande avanço da medicina cirúrgica. O horror mesmo presente nessa técnica é imaginar o ser humano como um robô que pode ser facilmente reajustado e ter alguma função que não condiz com o “real” ou esperado pela sociedade, desligada. Quase uma reprogramação de seres humanos, era isso que ocorria naquele espaço. Literalmente os verdadeiros loucos acreditavam que desligando uma parte cerebral do individuo traria a “cura” que eles tanto “precisavam”.



Sexto momento:
            Após todas essas vivências secas e amargas, me deparei com pensamentos acerca de quem seriam aqueles prisioneiros. As pessoas tidas como “loucas” eram as com depressão, pessoas homo afetivas, esposas que os maridos mandavam internar ao arranjarem uma amante, filhos e filhas com mal comportamento, pessoas negras....tudo que não cabia dentro de um padrão esperado era digno de receber uma passagem só de ida no “Trem dos Loucos” de Barbacena. Imaginando essas pessoas, eu me deparo olhando para meu mundo particular, as pessoas que são importantes pra mim, e até eu mesmo! Todos nós, melhores amigos, conhecidos, pessoas importantes da minha vida...todos seríamos passíveis de ganhar nossas passagens naquele período. Nesse momento de reflexão, eu realmente senti a cortina do tempo e espaço romper-se de vez, eu poderia facilmente ser um prisioneiro daquele espaço por atitudes e preferências pessoais de vida, assim como essas pessoas que citei.
            Ao final do circuito, vemos a tentativa de mostrar as melhorias e impactos da luta antimanicomial não só no país, mas no mundo. Talvez o pensamento da equipe era a de acalentar almas assombradas por aquela história, talvez por isso a seleção de montar-se o museu no prédio administrativo  e não nas alas de internação, talvez por isso a tentativa de mostrar um horizonte de expectativas positivas para os dias de hoje. Todavia, na minha percepção particular, sentia como se fosse uma tentativa falha de ligar o presente e futuro com esse passado que é tão pouco comentado. Era como se apenas por conta desses atos grotescos, fosse possível chegar no nível dos dias atuais. De fato, a história não nega, precisamos lembrar para que jamais ocorra novamente, entretanto, a tentativa de apaziguar esse discurso que precisa de fato ser contado, não foi a melhor escolha. Afinal, apenas na parte de conclusão do circuito expositivo que nos deparamos com essas informações, que em nenhum outro momento é trazida ao primeiro plano.

Final:
            Ao fim da visitação no espaço do museu, senti, ao sair do prédio, uma sensação de conforto, talvez um pouco egocêntrica, mas estava feliz de deixar aquele espaço para trás. Aquele espaço que conta uma história perturbadora e esquizofrênica, aquele espaço que te joga com os piores fantasmas, o que há de mais horrendo no ser humano: o direito de pensar que tem posse sobre a vida de outros seres humanos, que é superior aos atormentados por uma vida de reclusão e torturas constantes.
          Aquele espaço é capaz de retratar a imundice, o lado mais obscuro, a parte grotesca das pessoas! Não há acalento e nem perdão para aquilo, o que resta são fragmentos de esperanças que não podem ser colados. Como Dante Alighieri descreve em seu livro “A Divina Comédia” ao chegar e ler à descrição no Portão do Inferno: “Deixai aqui toda a esperança, vós que entrais”, a pessoa escolhida para ir aquele local chegava ao verdadeiro inferno e de lá, jamais poderia sair....