a tradição das visitas técnicas

No inverno de julho de 1945, quando as moças e senhoras costumavam usar chapéus em roupas de passeio e os homens trajavam ternos à rua, a turma do Curso de Museus do Museu Histórico Nacional/RJ excursionava para a cidade de Ouro Preto em Minas Gerais. O grupo de 19 pessoas veio de trem numa viagem que durou 16 horas. Durante a permanência de uma semana visitaram também as cidades de Mariana, Congonhas do Campo e o então arraial de Ouro Branco.

Passados 68 anos, o Curso de Museologia da UFOP mantém a tradição das visitas técnicas iniciada pelo Curso de Museus. Todo semestre o DEMUL se reúne para discutir e aprovar os roteiros de viagens das disciplinas que possuem visitas previstas em suas ementas. Em geral, os estudantes organizam a hospedagem, na busca de conforto, higiene, bom preço e localização. Os professores, claro, responsabilizam-se pela elaboração dos roteiros detalhados, agendamentos, relatórios posteriores, avaliações e ainda por todo o aspecto operacional de deslocamento.

Em meio à transitoriedade do mundo contemporâneo as visitas técnicas permanecem uma boa tradição que nos orgulhamos em manter devido à sua importância como recurso pedagógico.

Este blog cumpre, pois o objetivo final de avaliar os estudantes em suas visitas aos museus. Suas postagens são registros, narrativas e leituras da experiência vivida, um diário coletivo, dinâmico, crítico, quiçá, divertido.

Tenham todos uma boa leitura e uma boa viagem!

Prof.ª Ana Audebert


segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

Museu Imperial, patrimônio e disputas contemporâneas de memória: o caso da escultura Mima

 A visita ao Museu Imperial, associada à leitura do artigo “A pós-modernização da cultura: património e museus na contemporaneidade”, de Marta Anico, permite compreender como os museus são espaços atravessados por disputas simbólicas, políticas e éticas, especialmente no que diz respeito à construção das narrativas históricas e à representação do passado no presente.

    Marta Anico argumenta que o patrimônio não deve ser entendido como algo fixo ou neutro, mas como uma construção social permanentemente atualizada. Para a autora, “o património é um modo de produção cultural no presente que tem como recurso o passado” (ANICO, 2005, p. 76). Essa afirmação é central para pensar o Museu Imperial, instituição historicamente associada à valorização da memória da família imperial, mas que hoje se vê desafiada a revisar seus discursos à luz das demandas contemporâneas por inclusão, diversidade e justiça social.

    Nesse sentido, o Museu Imperial busca alinhar-se às discussões contemporâneas da Museologia, especialmente no que se refere às dimensões éticas, à responsabilidade social e à revisão crítica de narrativas historicamente hegemônicas. Em sua exposição de longa duração possui a escultura “Mima”, sendo uma estátua de 1m 90 cm em mármore de Carrara criada no século XIX por Arthur de Gobineau, diplomata francês e amigo de Dom Pedro II, mas também conhecido como o “pai do racismo científico” por suas teorias de supremacia ariana.

Imagem 1: Escultura Mima

Fonte: Google Fotos

    O Museu Imperial decidiu manter coberta a escultura Mima, localizada na Sala dos Diplomatas,  como parte de uma ação voltada à reflexão institucional sobre as formas mais adequadas de apresentação desse objeto controverso ao público. Nesse contexto, foi elaborada a Nota Técnica sobre a escultura, de autoria de Alessandra Bettencourt Figueiredo Fraguas, pesquisadora do Museu Imperial/Ibram/MinC, na qual se propõe a retirada da obra ou, alternativamente, sua exposição acompanhada de contextualização e problematização crítica.

    O documento reconhece que os objetos museológicos devem ser interpretados de forma reflexiva, uma vez que “objetos também são documentos e, por isso, precisam ser ‘lidos a contrapelo’, em suma, problematizados” (FRAGUAS,  2024 p. 3), assumindo que seus significados não são intrínsecos ou neutros, mas construídos a partir das condições sociais, políticas e culturais do presente, em consonância com a perspectiva de Marta Anico acerca do patrimônio como uma produção cultural continuamente atualizada.

Imagem 2: Escultura Coberta

Fonte: Google Imagens 

A decisão de retirar ou ressignificar a obra explicita que os museus não são apenas lugares de conservação, mas também espaços de poder, nos quais se escolhe o que mostrar, como mostrar e quais narrativas legitimar. Como aponta Anico (2005), os processos de patrimonialização são simultaneamente inclusivos e excludentes, pois contribuem para o recordar de certas histórias e para o esquecimento de outras. A ausência, por décadas, de contextualização crítica da escultura Mima” evidencia justamente esses silenciamentos e escolhas.


    A Nota Técnica demonstra um esforço institucional de alinhamento às discussões contemporâneas da Museologia, sobretudo no que se refere à responsabilidade social e à revisão das narrativas hegemônicas. O Museu Imperial reconhece que os objetos museológicos não possuem significados intrínsecos, mas são interpretados a partir das condições sociais, políticas e culturais do presente, exatamente como defende Marta Anico.

    Assim, o caso da escultura Mima” evidencia a transição de um modelo museológico centrado na autoridade do objeto para um modelo que valoriza o debate, a mediação e a multiplicidade de interpretações. O Museu Imperial, ao revisar suas práticas, reafirma seu papel como instituição viva, que dialoga com as transformações sociais e assume a complexidade de lidar com heranças históricas marcadas por desigualdades, violência simbólica e exclusões.

    Em consonância com as reflexões de Anico, percebe-se que enfrentar essas tensões não fragiliza o museu, mas, ao contrário, fortalece sua relevância social, ao transformá-lo em um espaço de reflexão crítica.



Referência

ANICO, Marta. A pós-modernização da cultura: património e museus na contemporaneidade. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 23, p. 71–86, jan./jun. 2005. Disponível: MUL106 - artigo Marta Anico.pdf. Acesso em: 19 dez. 2025.

FRAGUAS, Alessandra Bettencourt Figueiredo. Nota técnica: justificativa para a retirada da escultura “Mima”, de autoria de Joseph Arthur de Gobineau, da exposição de longa duração do Museu Imperial. Petrópolis, 2024. Manuscrito institucional. Museu Imperial/Ibram/MinC. Disponível em: Nota Técnica_Mima (1).pdf. Acesso em: 19 dez. 2025.





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