a tradição das visitas técnicas

No inverno de julho de 1945, quando as moças e senhoras costumavam usar chapéus em roupas de passeio e os homens trajavam ternos à rua, a turma do Curso de Museus do Museu Histórico Nacional/RJ excursionava para a cidade de Ouro Preto em Minas Gerais. O grupo de 19 pessoas veio de trem numa viagem que durou 16 horas. Durante a permanência de uma semana visitaram também as cidades de Mariana, Congonhas do Campo e o então arraial de Ouro Branco.

Passados 68 anos, o Curso de Museologia da UFOP mantém a tradição das visitas técnicas iniciada pelo Curso de Museus. Todo semestre o DEMUL se reúne para discutir e aprovar os roteiros de viagens das disciplinas que possuem visitas previstas em suas ementas. Em geral, os estudantes organizam a hospedagem, na busca de conforto, higiene, bom preço e localização. Os professores, claro, responsabilizam-se pela elaboração dos roteiros detalhados, agendamentos, relatórios posteriores, avaliações e ainda por todo o aspecto operacional de deslocamento.

Em meio à transitoriedade do mundo contemporâneo as visitas técnicas permanecem uma boa tradição que nos orgulhamos em manter devido à sua importância como recurso pedagógico.

Este blog cumpre, pois o objetivo final de avaliar os estudantes em suas visitas aos museus. Suas postagens são registros, narrativas e leituras da experiência vivida, um diário coletivo, dinâmico, crítico, quiçá, divertido.

Tenham todos uma boa leitura e uma boa viagem!

Prof.ª Ana Audebert


quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Papinho para museólogo (não) dormir



Texto e imagens por: Jackson Santos, Maíla Ambrósio e Pedro Porto;

(Relatória de visita técnica realizada pela disciplina "Museus no Mundo Contemporâneo" feita sob a orientação da professora Dra.Ana Audebert no ano de 2018.)


    Nossa conversa começa como um papinho para museólogo (não) dormir, perguntando: Qual a função dos museus na contemporaneidade? Os espertinhos dirão: Ah, esta é uma pergunta capciosa e, certamente não será respondida prontamente de supetão. Aliás, uma reflexão um pouco mais aprofundada pode desembaralhar frente nossa face inúmeros possíveis motivos de sobrevivência destas instituições de cultura no cotidiano atual. Os museus se esgotam numa única função? Frutos de uma herança que corroborou com a edificação das identidades nacionalistas, com a construção de uma história da arte e das evoluções científicas, o cerne destas instituições é posto à prova por volta da metade do século XX juntamente com outras áreas das ciências humanas e sociais que foram palco de uma grande virada de paradigmas.

    Isso porque o mundo, a partir dos anos 60 do século XX, foi balançado por lutas sociais em várias frentes: a luta das mulheres por equidade política, movimentos negros que intencionavam a garantia de seus direitos, movimentos estudantis, a descolonização da África e Ásia. Neste mesmo período a América Latina assistiu a instauração de diversas ditaduras. Os campos de pesquisas em ciências humanas e sociais, incluindo aí a Museologia, transformaram-se em ferramentas de resistência e transformação da sociedade. Assim como foram o palco onde se investigou o que é próprio do ser humano, pensando-o enquanto um sujeito-cidadão.

   A Mesa Redonda de Santiago do Chile, ocorrida em 1972, foi um encontro de profissionais de museus que, atentos às transformações em curso, a partir dos já citados anos 60, se reuniram com o propósito de repensar o lugar dos museus frente a esta grande movimentação social. O país latino-americano não foi escolhido aleatoriamente para sediar a reunião, neste momento a museologia percebia-se dominada por epistemologias europeias, algo que deixava de fora um público com necessidades culturais outras, como as sociedades latino-americanas, inseridas em contextos culturais, políticos e sociais próprios, por exemplo. Nesta ocasião duas noções inovadoras, a respeito da museologia surgiram: o museu integral, preocupado com a totalidade dos problemas da sociedade e, o museu ação, como instrumento dinâmico de mudança social. A museóloga Waldisa Rússio Guarnieri, desenvolvia no Brasil, também na década de 70 sua leitura de musealidade: denominado por ela fato social, este fenômeno seria um tipo de relação específica do homem com sua realidade. A tradicional estrutura Museu-Acervo-Público pode (e deve) deslocar-se à Território-Patrimônio-Comunidade.

   Daí, compartilhamos agora nossa vivência de uma tarde no MUQUIFU: De chegada, ao desembarcar do ônibus que nos conduziu de Ouro Preto à Belo Horizonte, checamos o endereço: Rua Santo Antônio do Monte, 708 - Vila Estrela. Nós, alunos de Museologia da UFOP, acostumados a visitar museus, não reconhecemos qual, dentre aquelas construções poderia ser o MUQUIFU, o Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos. Havia então uma árvore (na verdade duas, entrelaçadas) com uns 20 metros de altura. Padre Mauro Luiz da Silva, hoje um dos curadores do museu, chegou no Aglomerado Santa Lúcia, macroterritório de favela que envolve a Vila Estrela, e lá encontrou um grupo de mulheres que se reuniam para orar num ambiente que é um barracão, é uma cozinha e é uma igreja, enquanto tomavam chá preparado por Dona Jovem. Aos pés deste ambiente está plantada a árvore (na verdade duas, entrelaçadas) com uns 20 metros de altura.

    A casa é uma igreja, a sede do museu, lugar de encontros e comunhões. Porém o museu é muito mais do que isso. Padre Mauro nos conta que origem desta história se dá no inter relacionamento de 14 mulheres, que se deu no tempo e no espaço posto que essas 14 mulheres nunca estiveram todas juntas, ao mesmo tempo mas, suas vidas encontraram-se ligadas por algum fio condutor. O museu fala destas conexões, destes fios entrelaçados, fala de caminhos percorridos. Quase sempre caminhos que levam para às margens, às periferias, no sentido de que as pessoas que lá vivem são descendentes de pessoas que chegaram lá pela transformação do espaço físico, político e social que se deu com a criação da cidade de Belo Horizonte. 

   O interior do museu impressiona, visto que, a primeira parte trata-se do interior da igreja a qual essas 14 mulheres lutaram para ter esse espaço. Nas paredes da igreja se encontra pinturas, na realidade, cenas bíblicas onde as personagens são as 14 mulheres, uma mistura de sagrado e profano sem deixar de lado a presença e a cultura negra já que as cenas se passam em meio a favela e faz menção a festa do congado. A narrativa segue história cristã tradicional onde destacam-se a anunciação com Tia Ia sendo representada (a mais velha do grupo), Dona Generosa, Tia Neném que fez o grupo nascer e é representada como Maria no presépio, Ereniciana, Dona Santa, Dona Jovem (a responsável pelo chá), Maria Rodriguez, Josimeire (a primeira doutora da vila) sendo representada entre os doutores do Templo de Jerusalém, Sônia, Marilda e terminando com Dona Marta rainha do congado sendo representada a cima do altar na cena da assunção de Maria.

                           

    

 

   Partindo da formação da Vila, o museu evoca histórias de uma comunidade com características inerentes: a apropriação e o aproveitamento do espaço; a malha de caminhos, ruas, becos e vielas num desenho estreito, tortuoso, por vezes labiríntico; o desenho do vale, enquanto um acidente topográfico absolutamente respeitado pela ação humana; o estilo de construção das casas; a proximidade entre as casas; o tempo, próprio das pessoas e do lugar; os olhares e os andares, os saberes. Mas, também evoca problemas enfrentados pela comunidade como a negligência social, por parte do Estado, violências e o preconceito. 

   Neste diálogo, da comunidade com ela mesma, proposto pelo museu visto como um lugar de problematização da vida, tanto quanto de celebração da mesma, o MUQUIFU germinou, brotou, cresceu, floresceu. 

   Entre algumas peças que compõem o acervo do MUQUIFU existe uma lâmpada, um tipo de candeia, de brinquedo, vermelha. Pertencia a dois irmãos que moravam por aquelas bandas e que, por um malarranjado do destino tiveram seus caminhos separados, perdendo o contato que mantinham um com o outro. O objeto foi doado ao museu por um destes irmãos. Imagina-se que o motivo da doação da peça foi para que a história desses irmãos fosse narrada, como parte integrante da história de toda a Vila Estrela, não é? Não, não é. Um irmão espera, através da doação do objeto, que um dia o outro possa (re)descobrir o brinquedo, exposto no museu, gravado em um desses vídeos compartilhados pela internet, ou mesmo numa visita ao MUQUIFU. Rememorá-lo. Através do objeto persevera o irmão, ambos reencontrar-se-ão. Então repito-lhes a pergunta: Qual a função dos museus na contemporaneidade?


       


                                                      









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