Segundo
momento:
Fui aproximando do prédio,
vislumbrando aquela arquitetura temática e, diga-se a verdade, de ótimo gosto
fosse em qualquer outro espaço que não carregasse aquela aura sinistra. Lembro
de ficar imóvel, observando todo o espaço, imaginando o que acontecera ali,
saber que estava tão perto de um tempo histórico perturbador me deu certa
aflição. E, por um breve momento, eu podia afirmar que conseguia me ver lançando pra além
do tempo e do espaço, adentrando como um espectro aqueles muros e locais na
época do Hospital Colônia. Os internos (se é que poderíamos chama-los assim), cravados de sua autonomia, de sua subjetividade, daquilo que
é mais puro do ser humano, sua alma! Ali não havia tempo para o ser humano,
apenas animais atormentados por uma dor imposta, uma dor latente que espalhava
como vírus de um por um...todos esses sentimentos, toda essa “visão”, era como
se de fato eu pudesse ter dimensão do que foi aquele local, ou pelo menos a
ilusão. Senti um calafrio no corpo e uma dor chata no estômago, não há palavras
que possam descrever de fato o que sentira ali por aqueles breves segundos.
Voltado ao meu estado racional, fui
caminhando em direção a porta de entrada do museu e me deparei com a sensação
mais pesada ainda, era como se cada hora que aproximasse, naquele tempo nublado
de chuva, reações pulsativas naturais ressoassem por todo o meu corpo. Resolvi
olhar a vista lateral do museu, com a torre e enormes janelas, de fato parecia
algo saído de um filme de terror:
Terceiro
momento:
Após todo
o momento externo no espaço, adentrei-me à instituição museal. A recepção
atenciosa dos funcionários e a empolgação em suas falas. Fiquei imaginando,
enquanto um homem de certa idade falava, como seria trabalhar ali. Como eles
poderiam fazer um trabalho tão pesado do ponto de vista emocional se transformar
em algo receptivo e acolhedor? Era como se eu apenas pudesse observar máscaras,
como se tudo aquilo não passasse, talvez, de uma poluição da aura daquele
espaço, sentia me adentrar em um local de espetaculização de uma dor tremenda
e de uma memória que por mais que seja contada, ainda não encontrou seu espaço de abrangência. Eu estava enganado, obviamente! Profissionais são profissionais,
seja em qual ramo for e o quão grotesco seja, eles continuam sendo
profissionais. Mas de fato, me bateu um sentimento de repúdio pela reação daquelas
pessoas.
Passado
esse momento, iniciei a visita ao espaço e, logo na primeira sala, a primeira coisa
que pude ver pelo trabalho de museografia do espaço eram dois “uniformes” e uma
grande boneca. Juro que naquele momento me lembrei do filme “O Menino do Pijama
Listrado”, do diretor Mark Herman. Não era um “pijama listrado”, mas era um “pijama
azul”, aquilo que separava os tidos como "loucos" das pessoas “normais”. Aquilo
que excluía toda subjetividade e característica pessoal daqueles indivíduos,
tudo que eles tinham de mais importante; seu coração, naquelas roupas, não
representavam nada! Apenas animais aprisionados.
A boneca, que também estava
ali presente, me remeteu à bola que uniu o personagem judeu Shmuel do personagem
alemão Bruno no filme. Aquilo com certeza se remetia a uma criança e, talvez,
seja o maior choque daquele espaço. Você imaginar que não foram apenas pessoas
com certa idade aprisionadas ali, haviam crianças! Crianças que jamais saberiam
o que é brincar na rua, crianças que jamais ganhariam presentes de Natal,
crianças que não estudariam ou sentiriam o amor de seus pais, crianças que não cresceriam
e se tornariam jovens, que por sua vez não saberiam qual a sensação de um
primeiro beijo, um sentimento de amor qualquer, um momento de explosão pura de
felicidade....crianças desprovidas do que seria mais puro e belo da vida, a
liberdade! Ao adentrar no primeiro módulo, esses pensamentos se tornaram
latentes em minha cabeça e, horrivelmente aterrorizantes.
Ali
também, se encontrava alguns aparelhos um tanto quanto bizarros. Os Eletroconvulsores,
juntamente com a legenda que descrevia o seguinte:
“Eletroconvulsoterapia:
Desenvolvido na década de 1930, por psiquiatras
italianos, o método de provocar convulsões através de descargas elétricas, e
eletrochoque, passou a ser usado largamente em especial nos casos depressivos.
Somente nos anos de 1960, o ECT começou a ser usado após anestesia do paciente.
Os riscos: luxações, fraturas e eventualmente, morte por parada cardíaca e
respiratória. As descargas variam entre 120 e 130 volts.”
Dentro daquela descrição eu me perdia entre a sensação de tentar
entender como aquilo era feito e o PORQUÊ aquilo sequer era uma opção para “cura”
de algo que era tudo, menos doença. Segundo Daniela Arbrex, no livro intitulado
de “Holocausto Brasileiro”, cerca de 70% de todos internos não sofriam de
qualquer doença mental! 70% dos prisioneiros que ali estavam eram pessoas que
viviam suas vidas normalmente e que, por alguma razão horripilante do destino,
foram denunciadas e para ali enviadas. Outro ponto naquela sala que me tocou
intensamente foi a instalação com as panelas utilizadas no Hospital Colônia,
penduradas em fileiras descendo do teto, com plotagens gigantescas de prisioneiros
daquele espaço. Planejado pela equipe de curadoria do espaço ou não, se olhado
de um certo ângulo, era possível observar a boca aberta de um homem e uma
grande panela em sua frente. Imagem simbólica, que a princípio só teve um
impacto chocante ao observar. Abaixo da instalação, tínhamos outra legenda que descrevia uma
entrevista de um repórter com o diretor do espaço:
“REPÓRTER: - E a alimentação?
DIRETOR: - À basedo padrão do povo brasileiro
mesmo. Aqui não temos nenhuma nutricionista. Os doentes não cabem todos, de uma
só vez nos refeitórios. Entram uns 100 primeiro, depois outros 100, até todos
comerem. O serviço de cozinha é feito por oito funcionárias. Oito funcionárias
para preparar comida para 1.360 doentes!”
Quarto
momento:
Após
perpassado o primeiro momento incluso dentro daquele discurso horripilante, me
deparo com uma parte ainda pior. Essa parte era destinada a todos aqueles que,
mesmo em morte, não encontravam o acalento para seu sofrimento. Os corpos dos
prisioneiros dali eram vendidos para as grandes faculdades de medicina do país.
Além de todo sofrimento físico e psicológico sofrido em vida, aquelas almas não
encontravam o descanso de seus corpos, que seriam intensamente perfurados,
analisados, cortados....o sossego que alguns teriam em morte e a sensação de
paz, até isso, era usurpado dessas pessoas.
No discurso interno da
instituição, é dito que o auge de tal prática se dá em 1971 e em registros
analisados no Hospital Colônia, foram indicadas a venda de 1.853 corpos ao
longo de 106 meses. Em quase 9 anos a prática se perdurou naquele espaço. Já
não bastasse o roubo de suas liberdades, ainda havia o roubo de seus corpos! Nesse
momento, é quase se na minha visão, a morte deixasse de ser o consolo de
pessoas atormentadas naquele lugar.
Ao finalizar o primeiro
andar da exposição, me dirigi à escada que levava ao segundo andar do museu. Um
escada circular de madeira, com uma enorme plotagem no teto, dando uma visão horripilante
de uma mulher nua e encarcerada gritando, pelo que tudo indica, por socorro.
A
princípio julguei como uma certa espetaculização daquela pobre alma, ali
presa por toda sua eternidade e, convenhamos, não deixara de ser. Porém, ao
subir aqueles degraus barulhentos e adentrar ao segundo andar, pude me deparar
com a seguinte explicação:
“CONTENÇÃO: Celas, frades, correntes, camisas
de força, manchons, correias, faixas, cordas (contenção). Banhos gelados e
quentes (balneoterapia), injeções dolorosas de essência de terebintina (abcessos
de fixação). Tudo para silenciar um sofrimento que precisava apenas gritar.....”
Não
é que se justificasse tal escolha para aquele espaço, porém, era possível
entender a intenção de colocar a plotagem daquela prisioneira ali. Era como se
eu pudesse, ao subir aqueles degraus e ler aquela descrição, sentir como se
estivesse de forma bem rasa entrando naquelas celas, mesmo que de forma remota, era possível
imaginar aquele sofrimento e horror vivenciado por aquelas pessoas.
Quinto
momento:
“Lobotomia:
corte das ligações dos lobos frontais, ou córtex pré-frontal com o resto do cérebro
para acalmar as emoções e estabilizar personalidades, sem alterar a
inteligência e funções motoras. O córtex pré-frontal cumpre as funções
executivas (tomada de decisões, planejamento, raciocínio, compreensão,
expressão de personalidade, criatividade e comportamento).”
“O
picador de gelo: Chegar ao córtex pré-frontal pela cavidade ocular. Freeman
criou o principal instrumento da técnica: o orbiclast, inspirado em um picador
de gelo. O outro acessório era um martelo cirúrgico. A cirurgia, feita com
anestesia local e em enfermaria comum, foi usada largamente nos EUA até a década
de 1960, com resultados controversos.”
Cheguei
à parte mais horripilante da visita, a Sala da Lobotomia. Naquele espaço
estavam presentes tudo de mais aterrorizante em práticas cirúrgicas que eram
efetuadas. Equipamentos de uma técnica que faz de tudo, menos acalentar a
alma de um prisioneiro. O ato consiste, como descrito acima, em pegar um tipo
de picador de gelo, enfiar pela cavidade ocular da pessoa, dar uma leve
martelada para romper a fina camada de osso que separa o cérebro da cavidade, girando para romper as fibras. Em seguida, era retirado o equipamento e feito do
outro lado o mesmo procedimento. O ato durava aproximadamente 15 minutos e seus
resultados eram irreversíveis!
O maior horror, para mim, não
estava na técnica cirúrgica em si, coisas bem mais intensas são feitas em
pacientes que necessitam de alguma cirurgia nos dias de hoje, além do grande
avanço da medicina cirúrgica. O horror mesmo presente nessa técnica é imaginar
o ser humano como um robô que pode ser facilmente reajustado e ter alguma
função que não condiz com o “real” ou esperado pela sociedade, desligada. Quase uma reprogramação de seres
humanos, era isso que ocorria naquele espaço. Literalmente os verdadeiros loucos acreditavam que desligando uma
parte cerebral do individuo traria a “cura” que eles tanto “precisavam”.
Sexto
momento:
Após
todas essas vivências secas e amargas, me deparei com pensamentos acerca de
quem seriam aqueles prisioneiros. As pessoas tidas como “loucas” eram as com
depressão, pessoas homo afetivas, esposas que os maridos mandavam internar ao arranjarem
uma amante, filhos e filhas com mal comportamento, pessoas negras....tudo que
não cabia dentro de um padrão esperado era digno de receber uma passagem só de
ida no “Trem dos Loucos” de Barbacena. Imaginando essas pessoas, eu me deparo
olhando para meu mundo particular, as pessoas que são importantes pra mim, e até eu
mesmo! Todos nós, melhores amigos, conhecidos, pessoas importantes da minha
vida...todos seríamos passíveis de ganhar nossas passagens naquele período.
Nesse momento de reflexão, eu realmente senti a cortina do tempo e espaço romper-se
de vez, eu poderia facilmente ser um prisioneiro daquele espaço por atitudes e
preferências pessoais de vida, assim como essas pessoas que citei.
Ao
final do circuito, vemos a tentativa de mostrar as melhorias e impactos da luta
antimanicomial não só no país, mas no mundo. Talvez o pensamento da equipe era
a de acalentar almas assombradas por aquela história, talvez por isso a seleção
de montar-se o museu no prédio administrativo
e não nas alas de internação, talvez por isso a tentativa de mostrar um
horizonte de expectativas positivas para os dias de hoje. Todavia, na minha
percepção particular, sentia como se fosse uma tentativa falha de ligar o
presente e futuro com esse passado que é tão pouco comentado. Era como se
apenas por conta desses atos grotescos, fosse possível chegar no nível dos dias
atuais. De fato, a história não nega, precisamos lembrar para que jamais ocorra
novamente, entretanto, a tentativa de apaziguar esse discurso que precisa de
fato ser contado, não foi a melhor escolha. Afinal,
apenas na parte de conclusão do circuito expositivo que nos deparamos com essas
informações, que em nenhum outro momento é trazida ao primeiro plano.
Final:
Ao fim
da visitação no espaço do museu, senti, ao sair do prédio, uma sensação de
conforto, talvez um pouco egocêntrica, mas estava feliz de deixar aquele espaço
para trás. Aquele espaço que conta uma história perturbadora e esquizofrênica,
aquele espaço que te joga com os piores fantasmas, o que há de mais horrendo no
ser humano: o direito de pensar que tem posse sobre a vida de outros
seres humanos, que é superior aos atormentados por uma vida de reclusão e
torturas constantes.
Aquele espaço é capaz
de retratar a imundice, o lado mais obscuro, a parte grotesca das pessoas! Não
há acalento e nem perdão para aquilo, o que resta são fragmentos de esperanças que não podem ser colados. Como Dante
Alighieri descreve em seu livro “A Divina Comédia” ao chegar e ler à
descrição no Portão do Inferno: “Deixai aqui toda a esperança, vós que entrais”, a pessoa escolhida para ir aquele local chegava ao verdadeiro inferno e de lá,
jamais poderia sair....
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