a tradição das visitas técnicas

No inverno de julho de 1945, quando as moças e senhoras costumavam usar chapéus em roupas de passeio e os homens trajavam ternos à rua, a turma do Curso de Museus do Museu Histórico Nacional/RJ excursionava para a cidade de Ouro Preto em Minas Gerais. O grupo de 19 pessoas veio de trem numa viagem que durou 16 horas. Durante a permanência de uma semana visitaram também as cidades de Mariana, Congonhas do Campo e o então arraial de Ouro Branco.

Passados 68 anos, o Curso de Museologia da UFOP mantém a tradição das visitas técnicas iniciada pelo Curso de Museus. Todo semestre o DEMUL se reúne para discutir e aprovar os roteiros de viagens das disciplinas que possuem visitas previstas em suas ementas. Em geral, os estudantes organizam a hospedagem, na busca de conforto, higiene, bom preço e localização. Os professores, claro, responsabilizam-se pela elaboração dos roteiros detalhados, agendamentos, relatórios posteriores, avaliações e ainda por todo o aspecto operacional de deslocamento.

Em meio à transitoriedade do mundo contemporâneo as visitas técnicas permanecem uma boa tradição que nos orgulhamos em manter devido à sua importância como recurso pedagógico.

Este blog cumpre, pois o objetivo final de avaliar os estudantes em suas visitas aos museus. Suas postagens são registros, narrativas e leituras da experiência vivida, um diário coletivo, dinâmico, crítico, quiçá, divertido.

Tenham todos uma boa leitura e uma boa viagem!

Prof.ª Ana Audebert


domingo, 24 de novembro de 2019

Uma "estética do horror" no Museu da Loucura


No início da década de 30 do século XX, o cinema norte-americano avançava em novo território: o filme sonoro. A Universal, um dos maiores estúdios cinematográficos da época, resolveu apostar no gênero do horror. Tod Browning, cineasta já experiente, foi escalado para a direção de Drácula (1931), clássico consagrado com o ator húngaro Bela Lugosi. O sucesso faria da Universal uma especialista do gênero lançando, no decorrer da década, filmes como Frankenstein (1931), O Homem Invisível (1933) e A Noiva de Frankenstein (1935). Browning vai para MGM e dirige Freaks em 1932 (traduzido para o Brasil como Monstros). A história se passa em um circo, com um elenco de atores portadores de nanismo, gêmeas siamesas, microcéfalos e escandalizou as plateias da época, causando repulsa na crítica e sendo banido de diversos países, encurtando a carreira de Browning no cinema. Os atores que integraram Freaks eram profissionais dos chamados “circos dos horrores”, atrações populares entre o final do século XIX e início do XX, que consistiam na exibição de humanos ou animais dotados de algum tipo de anomalia relacionada a mutações genéticas, doença e/ou defeito físico. Alijados da possibilidade de trabalhos ditos comuns, encontravam nestes circos uma forma de sobreviverem em comunidade. Perante os olhos do grande público, desfilavam e eram encarados como o grotesco, o bizarro, o não humano.

Figura 1 - Cartaz publicitário do filme "Freaks" (1932)

Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais. Um horror que esgota as possibilidades de se captar em celuloide. Uma política de extermínio que vitimou cerca de 60.000 pessoas ao longo do século XX. Cerca de 70% de todas as que lá foram internadas, segundo Daniela Arbex, não sofriam de qualquer doença mental – eram "desafetos, homossexuais, militantes políticos, mães solteiras, alcoolistas, mendigos, negros, pobres, pessoas sem documentos e todos os tipos de indesejados, inclusive os chamados insanos” (ARBEX, 2013, p. 23-24). Destituídos de qualquer possibilidade de identidade, seja trajando o chamado “azulão” ou desnudos, eram submetidos a eletrochoques e recebiam medicamentos de funcionários sem qualquer formação médica mas que, dotados da autoridade que lhes foi concedida, lançavam mão de todas suas possibilidades para calar – e matar – o grotesco, o bizarro, o diferente, o indesejado, o que, para eles, escapava a humanidade.


Museu da Loucura em Barbacena, Minas Gerais. Espaço de memória dedicado à primeira instituição psiquiátrica do Estado de Minas Gerais – que Franco Basaglia, principal nome na luta pela reforma psiquiátrica na década de 1970, declarou ser um “campo de concentração nazista”. Inaugurado em 1996, o museu foi fechado em 2014 para obras de revitalização da estrutura física, processos de conservação do acervo e elaboração de nova exposição de longa duração. Foi reinaugurado em 2016, quando completou 20 anos de existência.

A reabertura – e o período de elaboração da nova exposição de longa duração – datam dos anos subsequentes ao lançamento de Holocausto Brasileiro (2013), livro da jornalista Daniela Arbex, vencedor do Prêmio Jabuti na categoria livro-documentário, e best-seller  com mais de 21 reimpressões e 300.000 exemplares vendidos, tendo virado também documentário produzido pela HBO e veiculado para 40 países.

O Hospital Colônia, que já ganhara o cinema em 1979 com Em Nome da Razão de Helvécio Ratton, vira nova obra audiovisual e assim o Museu da Loucura, pelo cinema e pela literatura, ganham interesse renovado. Não à toa, a nova exposição ganha contornos de manual de acompanhamento in loco para o leitor médio do best seller de Arbex: a boneca pertencente à paciente Sueli é destacada em uma vitrine com outros brinquedos, dada a proeminência dela como personagem do livro da jornalista. A opção da autora por reproduzir em seu livro as imagens mais chocantes feitas da instituição em 1961 por Luiz Alfredo, fotógrafo da revista O Cruzeiro, não decepciona seus leitores-visitantes: são elas as imagens reproduzidas por toda a exposição de longa duração, em plotagens ou em papel fotográfico e emolduradas.

Há uma certa “estética do horror” que permeia toda a exposição: uma plotagem ao fundo de uma instalação feita com panelas pertencentes ao acervo do museu exibe dois pacientes no momento de almoço, enquanto um se alimenta levando comida com as mãos à boca, os olhos arregalados, o outro o observa e sorri. Ampliada por toda uma parede, a imagem se aproxima do grotesco – não há uma transmissão empática ao observador da mesma. Neste momento, a exposição se aproxima de algumas cenas de Freaks de Tod Browning, com close ups que reforçam as deficiências físicas dos atores como elementos para horrorizar o público.

Figura 2 - Plotagem em meio à instalação na exposição de longa duração do Museu da Loucura

Figura 3 - Cena do filme "Freaks" (1932), de Tod Browning


A escada em espiral que leva os visitantes ao primeiro andar poderia ser reminiscente de uma grande tradição de filmes de terror de casas mal assombradas – A Casa Sinistra (1932), Os Inocentes (1961), Desafio do Além (1963), Terror em Amityville (1979). Ao olharmos para o teto, nos deparamos com uma imagem de uma mulher encarcerada, nua, com as mãos estendidas em uma expressão de horror, como se clamasse por liberdade. Ao subirmos e observarmos de perto, percebemos que há uma grade física – um objeto museológico – sobrepondo a plotagem da imagem. Na legenda que a acompanha, descobrimos que se trata de grade da última cela a ser desativada no Pavilhão Antônio Carlos, em 1990. Dada a importância de tal acervo, a exposição demonstrou uma cerca incapacidade no que Ulpiano Bezerra de Meneses denomina enfrentamento do objeto, preferindo teatralizá-lo em uma representação do horror que busca apenas o choque pelo choque, migra significados e impede uma leitura crítica e reflexiva do potencial do objeto.

Figura 4 - Escada em espiral no Museu da Loucura

Figura 5 - A última cela a ser desativada no Hospital Colônia e plotagem de fotografia de paciente encarcerada e nua.

Enquanto discurso, a exposição do Museu da Loucura se ancora em três grandes fontes: a reportagem de O Cruzeiro, realizada em 1961; a série de reportagens Nos Porões da Loucura, realizadas por Hiram Firmino em 1979 e o filme de Helvécio Ratton, Em Nome da Razão. O discurso museológico é, portanto, o discurso midiatizado e reproduzido por Daniela Arbex em seu livro, uma visita satisfatória para seus leitores, mas que não traz novas histórias, não elenca acervos para além do que é comumente conhecido e não discute e problematiza a própria história da instituição.

A certo modo, tal como o “circo de horrores” retratado em Freaks de Tod Browning, somos convidados  a entrar e nos aterrorizarmos: mas, passada a anestesia dos sentidos, pouco é retido para além do horror que nos foi apresentado, o que definha a exposição enquanto meio possível para discussões e debates e promotora de reflexão e transformação daqueles que a visitam.



Referências

ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. São Paulo: Geração Editorial, 2013.

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