No início da década de 30 do século XX, o cinema
norte-americano avançava em novo território: o filme sonoro. A Universal, um
dos maiores estúdios cinematográficos da época, resolveu apostar no gênero do
horror. Tod Browning, cineasta já experiente, foi escalado para a direção de Drácula (1931), clássico consagrado com o ator húngaro Bela Lugosi.
O sucesso faria da Universal uma especialista do gênero lançando, no decorrer
da década, filmes como Frankenstein (1931), O Homem Invisível (1933) e A
Noiva de Frankenstein (1935). Browning vai para MGM e dirige Freaks em 1932
(traduzido para o Brasil como Monstros). A história se passa em um circo, com
um elenco de atores portadores de nanismo, gêmeas siamesas, microcéfalos e
escandalizou as plateias da época, causando repulsa na crítica e sendo banido
de diversos países, encurtando a carreira de Browning no cinema. Os atores que
integraram Freaks eram profissionais dos chamados “circos dos horrores”,
atrações populares entre o final do século XIX e início do XX, que consistiam
na exibição de humanos ou animais dotados de algum tipo de anomalia relacionada
a mutações genéticas, doença e/ou defeito físico. Alijados da possibilidade de
trabalhos ditos comuns, encontravam nestes circos uma forma de sobreviverem em
comunidade. Perante os olhos do grande público, desfilavam e eram encarados
como o grotesco, o bizarro, o não humano.
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Figura 1 - Cartaz publicitário do filme "Freaks" (1932) |
Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais. Um horror
que esgota as possibilidades de se captar em celuloide. Uma política de
extermínio que vitimou cerca de 60.000 pessoas ao longo do século XX. Cerca de
70% de todas as que lá foram internadas, segundo Daniela Arbex, não sofriam de
qualquer doença mental – eram "desafetos, homossexuais, militantes políticos,
mães solteiras, alcoolistas, mendigos, negros, pobres, pessoas sem documentos e
todos os tipos de indesejados, inclusive os chamados insanos” (ARBEX, 2013, p.
23-24). Destituídos de qualquer possibilidade de identidade, seja trajando o
chamado “azulão” ou desnudos, eram submetidos a eletrochoques e recebiam
medicamentos de funcionários sem qualquer formação médica mas que, dotados da
autoridade que lhes foi concedida, lançavam mão de todas suas possibilidades
para calar – e matar – o grotesco, o bizarro, o diferente, o indesejado, o que,
para eles, escapava a humanidade.
Museu da Loucura em Barbacena, Minas Gerais. Espaço de
memória dedicado à primeira instituição psiquiátrica do Estado de Minas Gerais –
que Franco Basaglia, principal nome na luta pela reforma psiquiátrica na década
de 1970, declarou ser um “campo de concentração nazista”. Inaugurado em 1996, o
museu foi fechado em 2014 para obras de revitalização da estrutura física, processos
de conservação do acervo e elaboração de nova exposição de longa duração. Foi
reinaugurado em 2016, quando completou 20 anos de existência.
A reabertura – e o período de elaboração da nova exposição
de longa duração – datam dos anos subsequentes ao lançamento de Holocausto
Brasileiro (2013), livro da jornalista Daniela Arbex, vencedor do Prêmio
Jabuti na categoria livro-documentário, e best-seller com mais de 21 reimpressões e 300.000 exemplares
vendidos, tendo virado também documentário produzido pela HBO e veiculado para
40 países.
O Hospital Colônia, que já ganhara o cinema em 1979 com Em
Nome da Razão de Helvécio Ratton, vira nova obra audiovisual e assim o Museu
da Loucura, pelo cinema e pela literatura, ganham interesse renovado. Não à toa,
a nova exposição ganha contornos de manual de acompanhamento in loco para
o leitor médio do best seller de Arbex: a boneca pertencente à paciente Sueli é
destacada em uma vitrine com outros brinquedos, dada a proeminência dela como
personagem do livro da jornalista. A opção da autora por reproduzir em seu livro as
imagens mais chocantes feitas da instituição em 1961 por Luiz Alfredo, fotógrafo
da revista O Cruzeiro, não decepciona seus leitores-visitantes: são elas
as imagens reproduzidas por toda a exposição de longa duração, em plotagens ou
em papel fotográfico e emolduradas.
Há uma certa “estética do horror” que permeia toda a
exposição: uma plotagem ao fundo de uma instalação feita com panelas
pertencentes ao acervo do museu exibe dois pacientes no momento de almoço, enquanto
um se alimenta levando comida com as mãos à boca, os olhos arregalados, o outro
o observa e sorri. Ampliada por toda uma parede, a imagem se aproxima do
grotesco – não há uma transmissão empática ao observador da mesma. Neste momento,
a exposição se aproxima de algumas cenas de Freaks de Tod Browning, com close
ups que reforçam as deficiências físicas dos atores como elementos para
horrorizar o público.
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Figura 2 - Plotagem em meio à instalação na exposição de longa duração do Museu da Loucura |
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Figura 3 - Cena do filme "Freaks" (1932), de Tod Browning |
A escada em espiral que leva os visitantes ao primeiro andar
poderia ser reminiscente de uma grande tradição de filmes de terror de casas
mal assombradas – A Casa Sinistra (1932), Os Inocentes (1961), Desafio do
Além (1963), Terror em Amityville (1979). Ao olharmos para o teto, nos
deparamos com uma imagem de uma mulher encarcerada, nua, com as mãos estendidas
em uma expressão de horror, como se clamasse por liberdade. Ao subirmos e
observarmos de perto, percebemos que há uma grade física – um objeto
museológico – sobrepondo a plotagem da imagem. Na legenda que a acompanha,
descobrimos que se trata de grade da última cela a ser desativada no Pavilhão
Antônio Carlos, em 1990. Dada a importância de tal acervo, a exposição
demonstrou uma cerca incapacidade no que Ulpiano Bezerra de Meneses denomina enfrentamento
do objeto, preferindo teatralizá-lo em uma representação do horror que
busca apenas o choque pelo choque, migra significados e impede uma leitura crítica
e reflexiva do potencial do objeto.
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Figura 4 - Escada em espiral no Museu da Loucura |
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Figura 5 - A última cela a ser desativada no Hospital Colônia e plotagem de fotografia de paciente encarcerada e nua. |
Enquanto discurso, a exposição do Museu da Loucura se ancora
em três grandes fontes: a reportagem de O Cruzeiro, realizada em 1961; a
série de reportagens Nos Porões da Loucura, realizadas por Hiram Firmino em 1979
e o filme de Helvécio Ratton, Em Nome da Razão. O discurso museológico é,
portanto, o discurso midiatizado e reproduzido por Daniela Arbex em seu livro,
uma visita satisfatória para seus leitores, mas que não traz novas histórias,
não elenca acervos para além do que é comumente conhecido e não discute e
problematiza a própria história da instituição.
A certo modo, tal como o “circo de horrores” retratado em Freaks de Tod Browning,
somos convidados a entrar e nos aterrorizarmos:
mas, passada a anestesia dos sentidos, pouco é retido para além do horror que
nos foi apresentado, o que definha a exposição enquanto meio possível para
discussões e debates e promotora de reflexão e transformação daqueles que a
visitam.
Referências
ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. São Paulo: Geração Editorial, 2013.
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