a tradição das visitas técnicas

No inverno de julho de 1945, quando as moças e senhoras costumavam usar chapéus em roupas de passeio e os homens trajavam ternos à rua, a turma do Curso de Museus do Museu Histórico Nacional/RJ excursionava para a cidade de Ouro Preto em Minas Gerais. O grupo de 19 pessoas veio de trem numa viagem que durou 16 horas. Durante a permanência de uma semana visitaram também as cidades de Mariana, Congonhas do Campo e o então arraial de Ouro Branco.

Passados 68 anos, o Curso de Museologia da UFOP mantém a tradição das visitas técnicas iniciada pelo Curso de Museus. Todo semestre o DEMUL se reúne para discutir e aprovar os roteiros de viagens das disciplinas que possuem visitas previstas em suas ementas. Em geral, os estudantes organizam a hospedagem, na busca de conforto, higiene, bom preço e localização. Os professores, claro, responsabilizam-se pela elaboração dos roteiros detalhados, agendamentos, relatórios posteriores, avaliações e ainda por todo o aspecto operacional de deslocamento.

Em meio à transitoriedade do mundo contemporâneo as visitas técnicas permanecem uma boa tradição que nos orgulhamos em manter devido à sua importância como recurso pedagógico.

Este blog cumpre, pois o objetivo final de avaliar os estudantes em suas visitas aos museus. Suas postagens são registros, narrativas e leituras da experiência vivida, um diário coletivo, dinâmico, crítico, quiçá, divertido.

Tenham todos uma boa leitura e uma boa viagem!

Prof.ª Ana Audebert


sábado, 23 de novembro de 2019

Sobre uma certa "Loucura" .



Conta-se que a entrada do século passado estava protegida pelo “Trem da Desrazão”. Para adentrar a nova era, as pessoas deviam passar pelo “Portão da Razão”, onde nobres membros da lucidez humana, conhecidos como os “ donos da razão”, guiariam aqueles aptos a viverem em um mundo racional. Os não aptos, seriam colocados no “Trem da Desrazão” e enviados a “Cidade dos Loucos”, onde viveriam por toda a eternidade, a margem do mundo racional, condenados ao eterno esquecimento. Antes de chegarem ao portão, as pessoas, geralmente ávidas por adentrarem a nova era, deviam passar por um grande túnel sob o qual se podia ler de maneira clara as seguintes palavras: 

“Para entrar na nova era a loucura deve morrer. Aqui será deixada toda subversão e caminharão para o novo século aqueles que vívidos da razão padecer.”

Sem pensar duas vezes, a multidão de pessoas que ali se achava, seguras de viverem na mais perfeita das “normalidades”, se atiravam ao túnel sedentas pelo porvir. A porta do novo século estava se fechando e os que ficassem no trem cairiam no esquecimento.Os “donos da razão”, por se julgarem racionais e dignos representantes do padrão normativo da nova era, estabeleciam os critérios que separavam os lúcidos racionais dos loucos. Tudo baseado no mais alto padrão cientifico herdado dos áureos tempos iluminados, em que a luz sobressaiu sobre as trevas da ignorância e obscurantismo. Por meio da ciência, toda a loucura seria apagada da nova era. Na medida em que as pessoas se aproximavam dos “donos da razão”, uma por uma ia sendo avaliada de acordo com os padrões normativos dos “donos da razão”. O critério mais utilizado era o das raças. Afinal, a ciência iluminada definiu por meio de análises de esqueletos, cadáveres e, sobretudo, de crânios, que as raças que possuíam crânios menores eram menos inteligentes, se distanciando dos civilizados. Na nova era a civilidade deveria predominar. Logo, as raças de crânios menores não poderiam ser civilizadas. Assim, os “donos da razão” decretaram que a raça negra não poderia ser civilizada, por possuírem crânios menores. Pertenciam a “raças inferiores” e, por isso, passíveis de “loucura”. A grande maioria dos negros não puderam entrar na nova era e foram encaminhados ao “Trem da Desrazão”, fadados ao eterno esquecimento.
Alguns “donos da razão” acharam por conveniente criar novos métodos científicos de análise de loucura. Tal pensamento se deu devido ao fato de que em meio à multidão se encontravam muitas pessoas conhecidas pelos “donos da razão” e que estes julgavam melhor não adentrarem a nova era. Muitos dos que foram encaminhados ao “Trem da Desrazão” eram amantes dos “donos da razão”, alguns, mulheres grávidas. Foram também crianças indesejadas, inimigos políticos, prostitutas e homossexuais. Alguns homens tímidos e, principalmente, mulheres. Muitas delas por possuírem comportamentos fora das normas estabelecidas pelos “donos da razão” no século que findara. As mulheres constituíram a maior parte daqueles que foram alocados no “Trem da Desrazão”. A maioria delas, negras. Os “donos da razão” acreditavam que na nova era deveria figurar os nobres valores civilizatórios e os que foram encaminhados para o trem representavam o atraso moral e civilizatório dos novos tempos.
Os que estavam no trem não compreendiam os critérios definidos pelos “donos da razão”. Se sentiam na mais perfeita das “normalidades” e questionavam: “o que separa a lucidez da loucura?” Um sábio que no trem se encontrava contou que certa vez ouviu que loucos são aqueles que têm uma visão de mundo e comportamento considerados fora da imagem ideal que os “donos da razão” fazem de si e da sociedade. A loucura está no olhar de quem observa.
O “Trem da Desrazão” seguiu seu destino rumo a “Cidade dos Loucos”. Pouco se sabe sobre a cidade. Alguns dizem que lá, os considerados loucos, irracionais, passariam por um processo de aprimoramento civilizatório. Isso porque, no ápice de suas bondades racionais, os “donos da razão” decidiram por bom grado que aqueles que se adequassem aos padrões morais civilizatórios, poderiam voltar a nova era, juntos daqueles guardiões da razão.  Consta que na “Cidade dos Loucos” todos perdiam suas identidades e individualidades. Ao chegarem, eram despidos de toda forma de ser. A multidão de pessoas que ali se encontravam deveriam deixar para trás tudo o que possuíam de belo, todas as obras de arte, todos os livros. Deveriam esquecer todos os versos e canções. Esvaziavam d’alma toda a beleza que possuíam. Com a individualidade perdida, todos vestiam o “Azulão”, uma certa indumentaria que agora definia todos como iguais, os enquadrados na não normatividade. O “Azulão” representava a perda da subjetividade inerente a cada ser. Era a tentativa de apagar toda a diversidade humana e transforma-la numa só, na dos “loucos”.
Assim se seguiu, por todo o século, pessoas sendo enviadas pelo “Trem da Desrazão” a “Cidade dos Loucos”. A cada década do século os “donos da razão” criavam os padrões da loucura de acordo com critérios morais que julgavam convenientes. As mulheres, negras, eram ainda as únicas que se enquadravam em todos os critérios no caminhar do século. Assim, mais e mais pessoas eram levadas para a “Cidade dos Loucos”.
 Dizem que com o passar do tempo, muitos se rebelaram. Afinal, um pouco de loucura é necessário para se viver. Uma mulher, uma daquelas que não se enquadrava nos padrões de racionalidade dos “donos da razão”, rebelou-se também. Afirmava que não se cura além da conta. Que gente normal demais é gente chata.  Dizia as pessoas: “vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda”. Com isso, os “donos da razão” é que se viram chatos demais com seus excessos de “normalidade”. Aos poucos, viram-se que na nova era tinha-se mais "loucos" do que lúcidos. Com isso, o “Trem da Desrazão” foi se apagando, e a “Cidade dos Loucos” perdendo o seu sentido.
Os mais antigos relatam que a mulher que se rebelou à favor da loucura sempre andava com um livro em mãos. E que este livro que usara para desafiar os “donos da razão” era uma linda estória de uma nobre cavaleira que vivia a combater os cavaleiros da razão com toda a arte produzida pela humanidade. Que a arte vale mais que a razão, e que ela os “donos da razão” não podiam destruir. Devido a sua bravura, ajudou a criar o “Movimento Antitremdaresrazão”. Com isso, o trem foi perdendo o seu sentido e agora alguns podem viver livremente sua "loucura"sem o temor de cair na “Cidade dos Loucos”.



"Trem da Desrazão". Foto: Carlheinz Hahmann
A "Cidade dos Loucos". Acervo do Museu da Loucura
Mulheres na "Cidade dos Loucos". Foto: Luiz Alfredo.

Homens na "Cidade dos Loucos": Foto: Luiz Alfredo.

"Azulão". Foto: Acervo pessoal.

















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