Conta-se
que a entrada do século passado estava protegida pelo “Trem da Desrazão”. Para
adentrar a nova era, as pessoas deviam passar pelo “Portão da Razão”, onde
nobres membros da lucidez humana, conhecidos como os “ donos da razão”,
guiariam aqueles aptos a viverem em um mundo racional. Os não aptos, seriam
colocados no “Trem da Desrazão” e enviados a “Cidade dos Loucos”, onde viveriam
por toda a eternidade, a margem do mundo racional, condenados ao eterno esquecimento.
Antes de chegarem ao portão, as pessoas, geralmente ávidas por adentrarem a
nova era, deviam passar por um grande túnel sob o qual se podia ler de maneira
clara as seguintes palavras:
“Para
entrar na nova era a loucura deve morrer. Aqui será deixada toda subversão e
caminharão para o novo século aqueles que vívidos da razão padecer.”
Sem
pensar duas vezes, a multidão de pessoas que ali se achava, seguras de viverem
na mais perfeita das “normalidades”, se atiravam ao túnel sedentas pelo porvir.
A porta do novo século estava se fechando e os que ficassem no trem cairiam no
esquecimento.Os “donos da razão”, por se julgarem racionais e dignos
representantes do padrão normativo da nova era, estabeleciam os critérios que
separavam os lúcidos racionais dos loucos. Tudo baseado no mais alto padrão
cientifico herdado dos áureos tempos iluminados, em que a luz sobressaiu sobre
as trevas da ignorância e obscurantismo. Por meio da ciência, toda a loucura
seria apagada da nova era. Na medida em que as pessoas se aproximavam dos
“donos da razão”, uma por uma ia sendo avaliada de acordo com os padrões
normativos dos “donos da razão”. O critério mais utilizado era o das raças.
Afinal, a ciência iluminada definiu por meio de análises de esqueletos,
cadáveres e, sobretudo, de crânios, que as raças que possuíam crânios menores
eram menos inteligentes, se distanciando dos civilizados. Na nova era a
civilidade deveria predominar. Logo, as raças de crânios menores não poderiam
ser civilizadas. Assim, os “donos da razão” decretaram que a raça negra
não poderia ser civilizada, por possuírem crânios menores. Pertenciam a “raças
inferiores” e, por isso, passíveis de “loucura”. A grande maioria dos
negros não puderam entrar na nova era e foram encaminhados ao “Trem da
Desrazão”, fadados ao eterno esquecimento.
Alguns
“donos da razão” acharam por conveniente criar novos métodos científicos de
análise de loucura. Tal pensamento se deu devido ao fato de que em meio à
multidão se encontravam muitas pessoas conhecidas pelos “donos da razão” e que
estes julgavam melhor não adentrarem a nova era. Muitos dos que foram
encaminhados ao “Trem da Desrazão” eram amantes dos “donos da razão”, alguns,
mulheres grávidas. Foram também crianças indesejadas, inimigos políticos, prostitutas
e homossexuais. Alguns homens tímidos e, principalmente, mulheres. Muitas delas
por possuírem comportamentos fora das normas estabelecidas pelos “donos da
razão” no século que findara. As mulheres constituíram a maior parte daqueles
que foram alocados no “Trem da Desrazão”. A maioria delas, negras. Os “donos da
razão” acreditavam que na nova era deveria figurar os nobres valores
civilizatórios e os que foram encaminhados para o trem representavam o atraso
moral e civilizatório dos novos tempos.
Os
que estavam no trem não compreendiam os critérios definidos pelos “donos da
razão”. Se sentiam na mais perfeita das “normalidades” e questionavam: “o
que separa a lucidez da loucura?” Um sábio que no trem se encontrava contou que
certa vez ouviu que loucos são aqueles que têm uma visão de mundo e
comportamento considerados fora da imagem ideal que os “donos da razão” fazem
de si e da sociedade. A loucura está no olhar de quem observa.
O
“Trem da Desrazão” seguiu seu destino rumo a “Cidade dos Loucos”. Pouco se sabe
sobre a cidade. Alguns dizem que lá, os considerados loucos, irracionais,
passariam por um processo de aprimoramento civilizatório. Isso porque, no ápice
de suas bondades racionais, os “donos da razão” decidiram por bom grado que
aqueles que se adequassem aos padrões morais civilizatórios, poderiam voltar a
nova era, juntos daqueles guardiões da razão. Consta que na “Cidade
dos Loucos” todos perdiam suas identidades e individualidades. Ao chegarem,
eram despidos de toda forma de ser. A multidão de pessoas que ali se encontravam deveriam deixar para trás tudo o que possuíam de belo, todas as obras de arte,
todos os livros. Deveriam esquecer todos os versos e canções. Esvaziavam d’alma
toda a beleza que possuíam. Com a individualidade perdida, todos vestiam o
“Azulão”, uma certa indumentaria que agora definia todos como iguais, os
enquadrados na não normatividade. O “Azulão” representava a perda da
subjetividade inerente a cada ser. Era a tentativa de apagar toda a diversidade
humana e transforma-la numa só, na dos “loucos”.
Assim
se seguiu, por todo o século, pessoas sendo enviadas pelo “Trem da Desrazão” a
“Cidade dos Loucos”. A cada década do século os “donos da razão” criavam os
padrões da loucura de acordo com critérios morais que julgavam convenientes. As
mulheres, negras, eram ainda as únicas que se enquadravam em todos os critérios
no caminhar do século. Assim, mais e mais pessoas eram levadas para a “Cidade
dos Loucos”.
Dizem
que com o passar do tempo, muitos se rebelaram. Afinal, um pouco de loucura é
necessário para se viver. Uma mulher, uma daquelas que não se enquadrava nos
padrões de racionalidade dos “donos da razão”, rebelou-se também. Afirmava que
não se cura além da conta. Que gente normal demais é gente
chata. Dizia as pessoas: “vivam a imaginação, pois ela é a nossa
realidade mais profunda”. Com isso, os “donos da razão” é que se viram chatos
demais com seus excessos de “normalidade”. Aos poucos, viram-se que na nova era
tinha-se mais "loucos" do que lúcidos. Com isso, o “Trem da Desrazão”
foi se apagando, e a “Cidade dos Loucos” perdendo o seu sentido.
Os
mais antigos relatam que a mulher que se rebelou à favor da loucura sempre
andava com um livro em mãos. E que este livro que usara para desafiar os “donos
da razão” era uma linda estória de uma nobre cavaleira que vivia a combater os
cavaleiros da razão com toda a arte produzida pela humanidade. Que a arte vale
mais que a razão, e que ela os “donos da razão” não podiam destruir. Devido a
sua bravura, ajudou a criar o “Movimento Antitremdaresrazão”. Com isso, o trem
foi perdendo o seu sentido e agora alguns podem viver livremente sua "loucura"sem o temor de cair na “Cidade dos Loucos”.
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