a tradição das visitas técnicas

No inverno de julho de 1945, quando as moças e senhoras costumavam usar chapéus em roupas de passeio e os homens trajavam ternos à rua, a turma do Curso de Museus do Museu Histórico Nacional/RJ excursionava para a cidade de Ouro Preto em Minas Gerais. O grupo de 19 pessoas veio de trem numa viagem que durou 16 horas. Durante a permanência de uma semana visitaram também as cidades de Mariana, Congonhas do Campo e o então arraial de Ouro Branco.

Passados 68 anos, o Curso de Museologia da UFOP mantém a tradição das visitas técnicas iniciada pelo Curso de Museus. Todo semestre o DEMUL se reúne para discutir e aprovar os roteiros de viagens das disciplinas que possuem visitas previstas em suas ementas. Em geral, os estudantes organizam a hospedagem, na busca de conforto, higiene, bom preço e localização. Os professores, claro, responsabilizam-se pela elaboração dos roteiros detalhados, agendamentos, relatórios posteriores, avaliações e ainda por todo o aspecto operacional de deslocamento.

Em meio à transitoriedade do mundo contemporâneo as visitas técnicas permanecem uma boa tradição que nos orgulhamos em manter devido à sua importância como recurso pedagógico.

Este blog cumpre, pois o objetivo final de avaliar os estudantes em suas visitas aos museus. Suas postagens são registros, narrativas e leituras da experiência vivida, um diário coletivo, dinâmico, crítico, quiçá, divertido.

Tenham todos uma boa leitura e uma boa viagem!

Prof.ª Ana Audebert


sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Relato da visita ao Museu da Loucura



                                                                                                      Sexta feira, 22 de novembro de 2019.

Visita ao Museu da Loucura, antigo Hospital Colônia, sediado em Barbacena, Minas Gerais.

          Fui a uma visita técnica ao Museu da Loucura com a turma matriculada na disciplina “Museus no Mundo Contemporâneo” no dia 09 deste mês. Lembro que era um sábado abafado, com cara de que logo, logo iria chover. Pegamos o ônibus da UFOP, Universidade Federal de Ouro Preto, em frente ao nosso prédio, tivemos algumas paradas inesperadas no caminho, mas em vista do todo, foi uma ida tranquila...
          Chegamos ao Museu quase meio dia e a professora Ana, que ministra essa disciplina, antes mesmo de sairmos do ônibus acordou que teríamos uma hora para fazer a visita, que não seria mediada. Ela deu algumas outras orientações e nesse momento a turma saiu do ônibus e se dispersou em seus grupos de amigos, para fazer a visita, cada um no seu ritmo.
          Lembro que também me juntei aos meus colegas mais próximos e fomos andando em direção a entrada do Museu, e nessa hora fui reparando no entorno, lá ainda é uma área hospitalar, então existe um público do Museu mas também existe um fluxo de usuários dos serviços de saúde que são oferecidos nesse complexo. E ao observar as pessoas que estavam circulando naquela área e que utilizam destes serviços, imaginei  os internos  do antigo Hospital Colônia chegando ao local pela primeira vez, e de alguma maneira, sabendo que a liberdade e singularidades que moldavam suas identidades estavam ficando para trás, na mesma velocidade em que seus passos adentravam as  instalações do Hospital. Neste momento senti que a visita ao Museu já tinha começado, antes mesmo de que eu tivesse entrado no circuito expositivo.
          Quando entrei na portaria do Museu decidi fazer a visita sozinha, para melhor compreender o que eu iria sentir ao longo do circuito, em silêncio absorvo melhor minhas sensações e emoções.
          Logo na primeira sala em que entrei havia exposto como acervo indumentárias, pertencidas aos internos de sexo masculino e feminino. Elas estavam sujas, haviam marcas de uso e dentro do bolso da indumentária masculina havia um jornal. Essas peças eram conhecidas internamente como “Azulão” e ela era a primeira forma em materialidade que expunham os métodos administrativos que previam a perda da individualidade de cada interno. Pois, ao vestir o “azulão” aqueles sujeitos se separavam, na maioria das vezes para sempre, dos seus pertences, das suas roupas, dos seus documentos, dos seus familiares, da suas histórias... Se separando do seu indivíduo, para criar um novo “eu” acorrentado as grades da loucura, da solidão, mesmo que em conjunto, se acorrentando a “não-normatividade” a qual eles tinham sido enquadrados pelos que se consideravam acima de tudo “normais”.
          Essas indumentárias assim como outros pertences dos internos, como bonecas produzidas e utilizadas por eles, alianças de casamentos , notas de dinheiros e seus nomes em um livro de registro da  entrada desses internos no Hospital , foram em relação ao acervo exposto os elementos que mais me fizeram sentir próxima a eles, que mesmo encobertos por vitrines, quase era possível senti-los em suas texturas e que por todo o ambiente eu podia notar um odor de suor, o mesmo de quando se usa a mesma roupa por dias e dias, não sendo  possível diferenciar o cheiro do tecido do cheiro da própria pele.
          Já no segundo andar havia o embate entre os anos de horror que houve no Brasil e no mundo em que os “loucos” eram depositados em hospitais, que os dopavam, com remédios, os faziam perder a consciência com a lobotomia e os enlouqueciam na imundice de grades, do escuro e de gritos intermináveis, vindo de corpos já corrompidos, já opacos em frente a uma realidade que mesmo inconcebível era real, e a luta antimanicomial, em que a diferença é tratada com respeito que qualquer sujeito deveria e deve possuir como direito.
          Após a visitação no segundo andar eu juntamente com um colega que encontrei na portaria, para onde fui quando já não estava cômodo para mim ficar naquelas dependências, decidimos dar uma volta pelo lado exterior do museu e dos departamentos hospitalares, e para minha surpresa me senti pior que quando estava dentro do Museu, ver a parte exterior do prédio, as portas do fundo, ver aquelas macas e cadeiras de rodas antigas se enferrujando me fez pensar nas estimadas mais de 60 mil mortes dos internos, me fez me sentir angustiada de estar ali, mas me fez pensar que em meio àquela prisão, muita das vezes a morte deveria ser a solução para o fim de um sofrimento, e me deixou triste imaginar que por vezes para que um sujeito possa se libertar é necessário abdicar da vida, sendo que a mesma deveria ser o maior símbolo de liberdade.
          Quando voltamos para a portaria do Museu a professora Ana nos chamou, o João, um dos responsáveis pela Instituição queria conversar com a gente, e numa conversa  breve ele nos passou alguns dados estatísticos e algumas histórias específicas do passar do tempo na história do Hospital Colônia, mas que em vista de tudo que eu vi e senti pelo circuito expositivo e pelas dependências do complexo, Museu-Hospital, como um todo, esses dados não me prenderam a atenção ou me surpreenderam, em comparação ao que só o espaço sendo ele por si só me fez sentir.
          Após essa conversa, nos preparamos para voltar para Ouro Preto, e apesar da chuva intensa que pegamos no caminho, a viagem de volta foi tranquila e em algumas poucas horas já tínhamos chegado novamente a UFOP.  
          Durante a semana essa visita e as sensações que vivenciei nela se fizeram bastante presente em meu pensamento, e na quarta-feira da semana seguinte, quando fui a minha psicóloga conversamos sobre estes sentimentos que emergiram na visita, angustia, indignação, medo... E então ela leu para mim um texto de Bert Hellinger, criador da Constelação Familiar, e que lidou em vida com temas relacionados com a exclusão de sujeitos em relação a um grupo, e é com ele que quero terminar este relato, por ter me identificado com o texto, ver nele meus sentimentos, mas principalmente, perceber a história de vários internos do antigo Hospital Colônia de Barbacena.
          “As chamadas “ovelhas negras” da família são, na verdade caçadores natos de caminhos de libertação para a árvore genealógica.
           Os membros de uma árvore que não se adaptam às normas ou tradições do sistema familiar, aqueles que desde cedo procuravam constantemente revolucionar as crenças, indo na contramão dos caminhos marcados pelas tradições familiares, aqueles criticados, julgados e mesmo rejeitados, esses geralmente, são os chamados a libertar a árvore de histórias repetitivas que frustram gerações inteiras.
          As “ovelhas negras”, as que não se adaptam, as que gritam rebeldia cumprem um papel básico dentro de cada sistema familiar, eles reparam, apanham e criam o novo e desabrocham ramos na árvore genealógica.
          Graças a esses membros, as nossas árvores renovam as suas raízes. Sua rebeldia é terra fértil, sua loucura é água que nutre, sua teimosia é novo ar, sua paixão é fogo que volta a acender o coração dos ancestrais.
          Incontáveis desejos reprimidos, sonhos não realizados, talentos frustrados de nossos ancestrais se manifestam na rebeldia dessas ovelhas negras procurando realizar-se. A árvore genealógica por inércia quererá continuar a manter o curso castrador e tóxico do seu tronco, o que faz a tarefa das nossas ovelhas um trabalho difícil e conflituoso.
          No entanto quem traria novas flores para a nossa árvore se não fosse por elas? Quem criaria novos ramos? Sem elas, os sonhos não realizados daqueles que sustentaram a árvore gerações atrás, morreriam enterrados sob suas próprias raízes.
          Que ninguém te faça duvidar, cuida da tua “raridade” como a flor mais preciosa de tua árvore. Tu es o sonho de todos os seus antepassados.”
Bert Hellinger



Júlia de Assis Ferreira Silva.

Acervo Museu da Loucura- Caderno de Registro do Hospital Colônia. Foto: Júlia de Assis





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