Sexta
feira, 22 de novembro de 2019.
Visita ao Museu da Loucura, antigo Hospital
Colônia, sediado em Barbacena, Minas Gerais.
Fui a uma visita técnica ao Museu da
Loucura com a turma matriculada na disciplina “Museus no Mundo Contemporâneo” no
dia 09 deste mês. Lembro que era um sábado abafado, com cara de que logo, logo
iria chover. Pegamos o ônibus da UFOP, Universidade Federal de Ouro Preto, em
frente ao nosso prédio, tivemos algumas paradas inesperadas no caminho, mas em
vista do todo, foi uma ida tranquila...
Chegamos ao Museu quase meio dia e a
professora Ana, que ministra essa disciplina, antes mesmo de sairmos do ônibus
acordou que teríamos uma hora para fazer a visita, que não seria mediada. Ela
deu algumas outras orientações e nesse momento a turma saiu do ônibus e se
dispersou em seus grupos de amigos, para fazer a visita, cada um no seu ritmo.
Lembro que também me juntei aos meus
colegas mais próximos e fomos andando em direção a entrada do Museu, e nessa
hora fui reparando no entorno, lá ainda é uma área hospitalar, então existe um
público do Museu mas também existe um fluxo de usuários dos serviços de saúde
que são oferecidos nesse complexo. E ao observar as pessoas que estavam
circulando naquela área e que utilizam destes serviços, imaginei os internos
do antigo Hospital Colônia chegando ao local pela primeira vez, e de
alguma maneira, sabendo que a liberdade e singularidades que moldavam suas
identidades estavam ficando para trás, na mesma velocidade em que seus passos
adentravam as instalações do Hospital. Neste
momento senti que a visita ao Museu já tinha começado, antes mesmo de que eu
tivesse entrado no circuito expositivo.
Quando entrei na portaria do Museu
decidi fazer a visita sozinha, para melhor compreender o que eu iria sentir ao
longo do circuito, em silêncio absorvo melhor minhas sensações e emoções.
Logo na primeira sala em que entrei
havia exposto como acervo indumentárias, pertencidas aos internos de sexo
masculino e feminino. Elas estavam sujas, haviam marcas de uso e dentro do
bolso da indumentária masculina havia um jornal. Essas peças eram conhecidas
internamente como “Azulão” e ela era a primeira forma em materialidade que
expunham os métodos administrativos que previam a perda da individualidade de
cada interno. Pois, ao vestir o “azulão” aqueles sujeitos se separavam, na
maioria das vezes para sempre, dos seus pertences, das suas roupas, dos seus
documentos, dos seus familiares, da suas histórias... Se separando do seu
indivíduo, para criar um novo “eu” acorrentado as grades da loucura, da
solidão, mesmo que em conjunto, se acorrentando a “não-normatividade” a qual
eles tinham sido enquadrados pelos que se consideravam acima de tudo “normais”.
Essas indumentárias assim como outros
pertences dos internos, como bonecas produzidas e utilizadas por eles, alianças
de casamentos , notas de dinheiros e seus nomes em um livro de registro da entrada desses internos no Hospital , foram
em relação ao acervo exposto os elementos que mais me fizeram sentir próxima a
eles, que mesmo encobertos por vitrines, quase era possível senti-los em suas
texturas e que por todo o ambiente eu podia notar um odor de suor, o mesmo de
quando se usa a mesma roupa por dias e dias, não sendo possível diferenciar o cheiro do tecido do
cheiro da própria pele.
Já no segundo andar havia o embate
entre os anos de horror que houve no Brasil e no mundo em que os “loucos” eram
depositados em hospitais, que os dopavam, com remédios, os faziam perder a
consciência com a lobotomia e os enlouqueciam na imundice de grades, do escuro
e de gritos intermináveis, vindo de corpos já corrompidos, já opacos em frente
a uma realidade que mesmo inconcebível era real, e a luta antimanicomial, em
que a diferença é tratada com respeito que qualquer sujeito deveria e deve
possuir como direito.
Após a visitação no segundo andar eu
juntamente com um colega que encontrei na portaria, para onde fui quando já não
estava cômodo para mim ficar naquelas dependências, decidimos dar uma volta
pelo lado exterior do museu e dos departamentos hospitalares, e para minha
surpresa me senti pior que quando estava dentro do Museu, ver a parte exterior
do prédio, as portas do fundo, ver aquelas macas e cadeiras de rodas antigas se
enferrujando me fez pensar nas estimadas mais de 60 mil mortes dos internos, me
fez me sentir angustiada de estar ali, mas me fez pensar que em meio àquela
prisão, muita das vezes a morte deveria ser a solução para o fim de um
sofrimento, e me deixou triste imaginar que por vezes para que um sujeito possa
se libertar é necessário abdicar da vida, sendo que a mesma deveria ser o maior
símbolo de liberdade.
Quando voltamos para a portaria do
Museu a professora Ana nos chamou, o João, um dos responsáveis pela Instituição
queria conversar com a gente, e numa conversa
breve ele nos passou alguns dados estatísticos e algumas histórias
específicas do passar do tempo na história do Hospital Colônia, mas que em
vista de tudo que eu vi e senti pelo circuito expositivo e pelas dependências
do complexo, Museu-Hospital, como um todo, esses dados não me prenderam a
atenção ou me surpreenderam, em comparação ao que só o espaço sendo ele por si
só me fez sentir.
Após essa conversa, nos preparamos
para voltar para Ouro Preto, e apesar da chuva intensa que pegamos no caminho,
a viagem de volta foi tranquila e em algumas poucas horas já tínhamos chegado
novamente a UFOP.
Durante a semana essa visita e as
sensações que vivenciei nela se fizeram bastante presente em meu pensamento,
e na quarta-feira da semana seguinte, quando fui a minha psicóloga conversamos
sobre estes sentimentos que emergiram na visita, angustia, indignação, medo...
E então ela leu para mim um texto de Bert Hellinger, criador da Constelação
Familiar, e que lidou em vida com temas relacionados com
a exclusão de sujeitos em relação a um grupo, e é com ele que quero terminar
este relato, por ter me identificado com o texto, ver nele meus sentimentos,
mas principalmente, perceber a história de vários internos do antigo Hospital
Colônia de Barbacena.
“As chamadas “ovelhas negras” da
família são, na verdade caçadores natos de caminhos de libertação para a árvore
genealógica.
Os membros de uma árvore que não se adaptam às
normas ou tradições do sistema familiar, aqueles que desde cedo procuravam
constantemente revolucionar as crenças, indo na contramão dos caminhos marcados
pelas tradições familiares, aqueles criticados, julgados e mesmo rejeitados,
esses geralmente, são os chamados a libertar a árvore de histórias repetitivas
que frustram gerações inteiras.
As “ovelhas negras”, as que não se
adaptam, as que gritam rebeldia cumprem um papel básico dentro de cada sistema
familiar, eles reparam, apanham e criam o novo e desabrocham ramos na árvore
genealógica.
Graças a esses membros, as nossas
árvores renovam as suas raízes. Sua rebeldia é terra fértil, sua loucura é água
que nutre, sua teimosia é novo ar, sua paixão é fogo que volta a acender o
coração dos ancestrais.
Incontáveis desejos reprimidos,
sonhos não realizados, talentos frustrados de nossos ancestrais se manifestam
na rebeldia dessas ovelhas negras procurando realizar-se. A árvore genealógica
por inércia quererá continuar a manter o curso castrador e tóxico do seu tronco,
o que faz a tarefa das nossas ovelhas um trabalho difícil e conflituoso.
No entanto quem traria novas flores
para a nossa árvore se não fosse por elas? Quem criaria novos ramos? Sem elas,
os sonhos não realizados daqueles que sustentaram a árvore gerações atrás,
morreriam enterrados sob suas próprias raízes.
Que ninguém te faça duvidar, cuida da
tua “raridade” como a flor mais preciosa de tua árvore. Tu es o sonho de todos
os seus antepassados.”
Bert
Hellinger
Júlia
de Assis Ferreira Silva.
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Acervo Museu da Loucura- Caderno de Registro do Hospital Colônia. Foto: Júlia de Assis |
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