As reflexões sobre patrimônio, representatividade, arte e espaço público tem emergido ao passo em que a sociedade civil toma consciência da própria identidade em consonância com a memória social do grupo a qual pertence. Os movimentos sociais reivindicam o politicamente correto, inclusive nesses campos, que legitimam discursos, práticas, que podem expressar uma história e memória hegemônica, e em contrapartida podem ser vetores para democratizar esses discursos.
A forma como uma sociedade trata seu passado reflete na forma como lidamos com o patrimônio no presente, inclusive nas nossas relações políticas que envolvem a memória e história. Trazer à tona essa discussão aponta caminhos para questionarmos o que estamos preservando, para quem estamos preservando e porque.
Esse cenário traz à tona a retirada ou manutenção de semióforos, configurados como homenagens a personagens ou momentos históricos. Um exemplo que obteve muita repercussão foi a estátua do bandeirante Borba Gato situada no bairro de Santo Amaro, em São Paulo. Um personagem de história escravagista, demarcado pela violência. E em contrapartida tem-se grupos solicitando a manutenção desse monumento com o argumento de que esse patrimônio deve ser preservado, desprezando a narrativa embutida nessa representação e o que sua permanência representa.
Publicado no dia 25/04/2017, o projeto de Lei 230/2017, aprovado em plenário pela câmara dos vereadores de Belo Horizonte, se apresenta numa tentativa de criminalizar a arte urbana. O projeto visa incentivar a prática do graffiti e inibir a pixação, criando um conflito inexistente entre as duas manifestações artísticas. O projeto foi aprovado no dia 13 de julho e segue para sanção ou veto do atual prefeito, Alexandre Kalil. Vale lembrar da existência da lei Federal Nº 12.408, de 25 de Maio de 2011, lei esta que altera o art. 65 da Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, uma legislação federal questionável, mas que trata o assunto e torna redundante o projeto de lei 230/2017. A lei denomina a pichação como crime.
O CURA, Circuito Urbano de Arte, é o maior festival de arte e pintura pública de Minas Gerais. O Evento promove e realiza as obras no espaço urbano, como o mural “O abraço" do artista Davi Melo Santos, referente a edição de 2017. Além disso, oferece como uma parte essencial da programação, os debates que buscam a construção coletiva de uma cena artística mais inclusiva. Segundo o site da organizacao “toda a programação de debates e aulas é gratuita e discutimos e aprendemos sobre diversos temas como a história do graffiti em BH, a história dos graffiti writers no mundo, como surgiu o muralismo, a presença das mulheres na cena de streetart, a invisibilidade de artistas negros, o patrimônio material e imaterial da cidade e o mercado da arte contemporânea urbana”.
Esse mesmo grupo, o CURA, denunciou em um post veiculado pela sua rede social, que as organizadoras e cinco artistas convidados da edição de 2020 do festival estão sendo investigados pela Polícia Civil por crime contra o meio ambiente, com base na lei Federal Nº 12.408, de 25 de Maio de 2011 já citada. O motivo seria a obra localizada no Centro da capital, na Rua Tupis, esquina com a Avenida Afonso Pena, intitulada “Deus é mae”, do artista paulista Robinho Santana. A acusação estaria relacionada com o fato da obra possuir uma espécie de moldura na qual apresenta a caligrafia com a estética do pixo.
Fonte: Site CURA
A Pichação atualmente é crime, e sua descriminalização passa por temas como liberdade de expressão e denúncia às injustiças sociais, uma resposta de um grupo social ao Estado, que não oferece os subsídios básicos previstos por lei para a sociedade. O Estado esquece de uma parcela da população e o pixo apresenta lembretes expostos pela cidade. Lembretes da existência da dignidade humana.
O ponto de reflexão se torna evidente quando vemos as situações descritas e as comparamos. Porque querem desintegrar práticas sociais de representação e investir na manutenção de representações que não representam mais o arranjo social contemporâneo? Se a memória nos representa, não deveríamos ter o poder de elege-la?
Pensar sobre essas questões se torna necessário para identificar a própria identidade e construir narrativas de uma memória inclusiva e democrática, que considere as questões sociais atuais e os direitos humanos nas representações. O artista, rapper, escritor, historiador e compositor brasileiro Gustavo Pereira Marques, mais conhecido pelo nome artístico Djonga, em sua música “Olho de Tigre”, lançada em 2017, traz versos com referências que vão desde o lutador Floyd Mayweather até o grupo revolucionário Panteras Negras.
O intuito de Djonga é valorizar a cultura negra. Reconhecendo sua liberdade poética, sendo ele um artista negro que reivindica seu espaço social (inclusive no campo da arte) e considerando a música como forma de expressão assim como o pixo, vale evidenciar um trecho de sua produção sonora que pressupõe um tema muito presente nas discussões sobre patrimônio, representatividade, arte e espaço público, a luta pela equidade etnico-racial:
“Sensação, sensacional
Sensação, sensacional
Sensação, sensacional
Firma, firma, firma
Fogo nos racista”
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